Ausência de lei complementar impede ISS em leasing
Ao longo do tempo, buscou-se sustentar a inconstitucionalidade da
incidência do ISS sobre o contrato de leasing (tanto o operacional, quanto o
financeiro), seja porque ele não teria sido expressamente previsto na lista de
serviços tributáveis pelo imposto, vício esse que foi sanado pela Lei
Complementar 56, de 15 de dezembro de 1987, seja porque ele não teria a natureza
de prestação de serviço, por não configurar obrigação de fazer.
Nutria-se a esperança, quanto a este último argumento, de que o Supremo Tribunal Federal viesse a adotar o mesmo entendimento que havia prevalecido quando do exame da incidência do ISS sobre locação de bens móveis. De acordo com esse precedente, por não ter a locação a natureza de obrigação de fazer (e, sim, obrigação de dar), o imposto municipal não poderia incidir sobre o seu preço (RE 116.121, Pleno, Min. Marco Aurélio, DJ de 25 de maio de 2001).
Essa esperança caiu por terra quando o Tribunal decidiu que o leasing financeiro, diferentemente do leasing operacional, teria, sim, a natureza de serviço (que se corporificaria no próprio financiamento realizado) e que, consequentemente, estaria sujeito à incidência do ISS (RE 547.245 e RE 592.905, Pleno, Min. Eros Grau, em 2 de dezembro de 2009).
Note-se, contudo, que nessa oportunidade o STF julgou a constitucionalidade dessa incidência exclusivamente sob o enfoque de o leasing ter ou não a natureza de serviço. Não se examinou qualquer outro pressuposto constitucional que, se não observado, pudesse impedir a incidência do imposto.
É o que farei neste artigo.
De acordo com o artigo 146 da Constituição Federal, cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência entre a União, os estados e os municípios, de forma a evitar que entes políticos distintos promovam a dupla (ou tripla) incidência de tributos sobre um mesmo fato gerador.
A previsão em lei complementar sobre a forma como esses conflitos devem ser dirimidos constitui premissa de incidência do tributo. A ausência de tal norma compromete a própria cobrança do imposto sobre a atividade de que se trate, e não apenas aquela que se dê nas circunstâncias em que haja a possibilidade concreta de conflito (dupla tributação).
Quando examinei, nesta coluna, a constitucionalidade da incidência do ISS na importação de serviços, tive a oportunidade de citar dois precedentes do STF que examinaram esse tema.
O primeiro deles foi aquele em que se declarou a inconstitucionalidade da cobrança do Adicional do Imposto sobre a Renda (ADIR), exatamente por não haver lei complementar que dispusesse sobre as regras que solucionariam os eventuais conflitos de competência que decorriam das leis estaduais instituidoras do tributo.
O ADIR recaia sobre o que fosse pago à União a título do Imposto sobre a Renda incidente sobre lucros, ganhos ou rendimentos percebidos por pessoas físicas ou jurídicas.
Considerando que não havia regra única sobre os critérios de cálculo e cobrança do ADIR, os estados poderiam adotar (e efetivamente adotavam) regras incompatíveis entre si, que acabavam por resultar em problemas diversos, dos quais destacamos:
i) a definição do estado competente na situação em que o contribuinte possuía estabelecimentos em estados diversos;
ii) a situação na qual o contribuinte, no primeiro dia do ano, transferia o seu domicílio de São Paulo (onde o fato gerador — Lei do estado de São Paulo 6.352/1988 — era o mesmo do imposto de renda) para o Rio de Janeiro (onde o fato gerador era o pagamento do Imposto de Renda, Lei do estado do Rio de Janeiro 1.394/1988); nessas circunstâncias, ambos os estados se consideravam competentes para fazer incidir o adicional.
Em razão de situações como essas, o STF decidiu que o ADIR não poderia ser instituído pelos estados e pelo Distrito Federal enquanto lei complementar não dispusesse sobre as matérias referidas no artigo 146 da CF.
Eis a ementa da decisão proferida em uma das 27 Ações Diretas de Inconstitucionalidade, julgadas pelo plenário do STF, que ilustra, com exatidão, o entendimento desse tribunal sobre a matéria:
"Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 6.352, de 29 ele dezembro de 1988, do Estado de São Paulo. Tributário. Adicional de Imposto de Renda (CF, art 155, II), arts. 146 e 24, § 3 da parte permanente da CF e art. 34, §§ 3º, 4° e 5º do ADCT. O adicional do imposto de renda, de que trata o inciso II do art. 155, não pode ser instituído pelos Estados e Distrito Federal, sem que, antes, a lei complementar nacional, prevista no caput do art. 146, disponha sobre as matérias referidas em seus incisos e alíneas, não estando sua edição dispensada pelo § 3° do art. 24 da parte permanente da Constituição Federal, nem pelos §§ 3º, 4° e 5° do art. 34 do ADCT. Ação julgada procedente, declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 6.352, de 29 de dezembro de 1988, do Estado de São Paulo." (ADIN 28-4-SP, Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 151, p. 657)
Outro precedente jurisprudencial que tratou do tema em análise foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.600-8, de que foi relator o ministro Nelson Jobim. Nessa ação, julgou-se inconstitucional a incidência do ICMS sobre transporte aéreo de pessoas, entre outros motivos, porque faltava lei complementar que dispusesse sobre eventuais conflitos de competência.
Destacamos trecho do voto da ministra Ellen Gracie, que bem ilustra o raciocínio então desenvolvido:
“A Constituição Federal estabelece em seu art. 146 que à Lei Complementar cabe dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre os Estados (I); definir fatos geradores, base de cálculo e contribuintes relativamente aos impostos discriminados na Constituição (III, a); e estabelecer normas relativas a obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários (III, b). Tudo isso, como se viu e melhor foi demonstrado pelo voto que me antecedeu, não está claramente definido, com relação ao transporte aéreo, de passageiros na referida legislação. Os dispositivos impugnados nada estabelecem sobre a forma como serão solucionados os conflitos em torno da competência impositiva, nem sobre a partilha do produto do imposto, o que seria imprescindível, em face da circunstância de a prestação desse serviço envolver, na maioria das vezes, mais de um Estado (...)”
Particularmente em relação ao leasing financeiro, em virtude das várias etapas necessárias à realização dessa atividade, é possível e, aliás, muito comum, que haja dispersão dos estabelecimentos prestadores do serviço, em municípios distintos.
De fato, em tese, o exercício da atividade pode se dar em, pelo menos, três etapas/locais distintos, quais sejam:
i) local da assinatura do contrato, além da captação do cliente e coleta das suas informações;
ii) local em que está localizada a equipe técnica responsável por operacionalizar o financiamento; e
iii) local da entrega do bem financiado.
Tanto essas circunstâncias geram dúvida sobre os municípios competentes para cobrar ISS que, atualmente, está pendente de análise pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, o julgamento do Recurso Especial 1.060.210, em que se discute se o ISS seria devido ao município em que é assinado o contrato, ou àquele em que localizada a equipe técnica responsável por efetivamente conceder o financiamento.
É absolutamente indispensável, portanto, que lei complementar disponha sobre como serão dirimidos os conflitos de competência nessas situações, e a sua ausência, da mesma forma como ocorreu com o ADIR e com o ICMS sobre transporte aéreo, impede a incidência do ISS sobre as operações de leasing financeiro.
Prova disso, é que tramita no Congresso Nacional o projeto de lei complementar (PLP) 542/2009, de autoria do Deputado Federal Luiz Carlos Hauly, que fixa como município competente para recolher o ISS aquele no qual ocorre a entrega do bem ao cliente final (que, reparem, nem consta da discussão pendente de julgamento pelo STJ, acima referida).
Baseado nessas premissas, a conclusão a que chegamos é no sentido de que, apesar de o leasing financeiro ter a natureza de serviço (conforme jurisprudência do STF) e, portanto, configurar fato gerador do ISS, para que essa incidência ocorra em consonância com os princípios constitucionais que regem as relações tributárias, será necessária a edição de lei complementar que disponha sobre os critérios a serem utilizados na solução dos conflitos de competência inerentes ao exercício dessa atividade.
Nutria-se a esperança, quanto a este último argumento, de que o Supremo Tribunal Federal viesse a adotar o mesmo entendimento que havia prevalecido quando do exame da incidência do ISS sobre locação de bens móveis. De acordo com esse precedente, por não ter a locação a natureza de obrigação de fazer (e, sim, obrigação de dar), o imposto municipal não poderia incidir sobre o seu preço (RE 116.121, Pleno, Min. Marco Aurélio, DJ de 25 de maio de 2001).
Essa esperança caiu por terra quando o Tribunal decidiu que o leasing financeiro, diferentemente do leasing operacional, teria, sim, a natureza de serviço (que se corporificaria no próprio financiamento realizado) e que, consequentemente, estaria sujeito à incidência do ISS (RE 547.245 e RE 592.905, Pleno, Min. Eros Grau, em 2 de dezembro de 2009).
Note-se, contudo, que nessa oportunidade o STF julgou a constitucionalidade dessa incidência exclusivamente sob o enfoque de o leasing ter ou não a natureza de serviço. Não se examinou qualquer outro pressuposto constitucional que, se não observado, pudesse impedir a incidência do imposto.
É o que farei neste artigo.
De acordo com o artigo 146 da Constituição Federal, cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência entre a União, os estados e os municípios, de forma a evitar que entes políticos distintos promovam a dupla (ou tripla) incidência de tributos sobre um mesmo fato gerador.
A previsão em lei complementar sobre a forma como esses conflitos devem ser dirimidos constitui premissa de incidência do tributo. A ausência de tal norma compromete a própria cobrança do imposto sobre a atividade de que se trate, e não apenas aquela que se dê nas circunstâncias em que haja a possibilidade concreta de conflito (dupla tributação).
Quando examinei, nesta coluna, a constitucionalidade da incidência do ISS na importação de serviços, tive a oportunidade de citar dois precedentes do STF que examinaram esse tema.
O primeiro deles foi aquele em que se declarou a inconstitucionalidade da cobrança do Adicional do Imposto sobre a Renda (ADIR), exatamente por não haver lei complementar que dispusesse sobre as regras que solucionariam os eventuais conflitos de competência que decorriam das leis estaduais instituidoras do tributo.
O ADIR recaia sobre o que fosse pago à União a título do Imposto sobre a Renda incidente sobre lucros, ganhos ou rendimentos percebidos por pessoas físicas ou jurídicas.
Considerando que não havia regra única sobre os critérios de cálculo e cobrança do ADIR, os estados poderiam adotar (e efetivamente adotavam) regras incompatíveis entre si, que acabavam por resultar em problemas diversos, dos quais destacamos:
i) a definição do estado competente na situação em que o contribuinte possuía estabelecimentos em estados diversos;
ii) a situação na qual o contribuinte, no primeiro dia do ano, transferia o seu domicílio de São Paulo (onde o fato gerador — Lei do estado de São Paulo 6.352/1988 — era o mesmo do imposto de renda) para o Rio de Janeiro (onde o fato gerador era o pagamento do Imposto de Renda, Lei do estado do Rio de Janeiro 1.394/1988); nessas circunstâncias, ambos os estados se consideravam competentes para fazer incidir o adicional.
Em razão de situações como essas, o STF decidiu que o ADIR não poderia ser instituído pelos estados e pelo Distrito Federal enquanto lei complementar não dispusesse sobre as matérias referidas no artigo 146 da CF.
Eis a ementa da decisão proferida em uma das 27 Ações Diretas de Inconstitucionalidade, julgadas pelo plenário do STF, que ilustra, com exatidão, o entendimento desse tribunal sobre a matéria:
"Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 6.352, de 29 ele dezembro de 1988, do Estado de São Paulo. Tributário. Adicional de Imposto de Renda (CF, art 155, II), arts. 146 e 24, § 3 da parte permanente da CF e art. 34, §§ 3º, 4° e 5º do ADCT. O adicional do imposto de renda, de que trata o inciso II do art. 155, não pode ser instituído pelos Estados e Distrito Federal, sem que, antes, a lei complementar nacional, prevista no caput do art. 146, disponha sobre as matérias referidas em seus incisos e alíneas, não estando sua edição dispensada pelo § 3° do art. 24 da parte permanente da Constituição Federal, nem pelos §§ 3º, 4° e 5° do art. 34 do ADCT. Ação julgada procedente, declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 6.352, de 29 de dezembro de 1988, do Estado de São Paulo." (ADIN 28-4-SP, Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 151, p. 657)
Outro precedente jurisprudencial que tratou do tema em análise foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.600-8, de que foi relator o ministro Nelson Jobim. Nessa ação, julgou-se inconstitucional a incidência do ICMS sobre transporte aéreo de pessoas, entre outros motivos, porque faltava lei complementar que dispusesse sobre eventuais conflitos de competência.
Destacamos trecho do voto da ministra Ellen Gracie, que bem ilustra o raciocínio então desenvolvido:
“A Constituição Federal estabelece em seu art. 146 que à Lei Complementar cabe dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre os Estados (I); definir fatos geradores, base de cálculo e contribuintes relativamente aos impostos discriminados na Constituição (III, a); e estabelecer normas relativas a obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários (III, b). Tudo isso, como se viu e melhor foi demonstrado pelo voto que me antecedeu, não está claramente definido, com relação ao transporte aéreo, de passageiros na referida legislação. Os dispositivos impugnados nada estabelecem sobre a forma como serão solucionados os conflitos em torno da competência impositiva, nem sobre a partilha do produto do imposto, o que seria imprescindível, em face da circunstância de a prestação desse serviço envolver, na maioria das vezes, mais de um Estado (...)”
Particularmente em relação ao leasing financeiro, em virtude das várias etapas necessárias à realização dessa atividade, é possível e, aliás, muito comum, que haja dispersão dos estabelecimentos prestadores do serviço, em municípios distintos.
De fato, em tese, o exercício da atividade pode se dar em, pelo menos, três etapas/locais distintos, quais sejam:
i) local da assinatura do contrato, além da captação do cliente e coleta das suas informações;
ii) local em que está localizada a equipe técnica responsável por operacionalizar o financiamento; e
iii) local da entrega do bem financiado.
Tanto essas circunstâncias geram dúvida sobre os municípios competentes para cobrar ISS que, atualmente, está pendente de análise pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, o julgamento do Recurso Especial 1.060.210, em que se discute se o ISS seria devido ao município em que é assinado o contrato, ou àquele em que localizada a equipe técnica responsável por efetivamente conceder o financiamento.
É absolutamente indispensável, portanto, que lei complementar disponha sobre como serão dirimidos os conflitos de competência nessas situações, e a sua ausência, da mesma forma como ocorreu com o ADIR e com o ICMS sobre transporte aéreo, impede a incidência do ISS sobre as operações de leasing financeiro.
Prova disso, é que tramita no Congresso Nacional o projeto de lei complementar (PLP) 542/2009, de autoria do Deputado Federal Luiz Carlos Hauly, que fixa como município competente para recolher o ISS aquele no qual ocorre a entrega do bem ao cliente final (que, reparem, nem consta da discussão pendente de julgamento pelo STJ, acima referida).
Baseado nessas premissas, a conclusão a que chegamos é no sentido de que, apesar de o leasing financeiro ter a natureza de serviço (conforme jurisprudência do STF) e, portanto, configurar fato gerador do ISS, para que essa incidência ocorra em consonância com os princípios constitucionais que regem as relações tributárias, será necessária a edição de lei complementar que disponha sobre os critérios a serem utilizados na solução dos conflitos de competência inerentes ao exercício dessa atividade.
Gustavo
Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto, secretário-geral da ABDF
(Associação Brasileira de Direito Financeiro), diretor do Centro de Estudos das
Sociedades de Advogados (Cesa) e presidente da Câmara Britânica do Rio de
Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 22 de agosto de
2012
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