Como atrapalhar o funcionamento do Judiciário
Todos
nós desejamos um sistema tributário de boa qualidade. Quando nos vemos diante de
algum problema que dependa de solução jurídica, queremos aquilo que se chama
Justiça Tributária.
Mas,
infelizmente, tudo indica que há pessoas, instituições ou mecanismos legais que
atuam em sentido contrário, seja incentivando a criação de problemas que não
deveriam existir, seja impedindo que as possíveis soluções para eles possam ser
encontradas e mesmo evitando que elas sejam colocadas em prática, ainda que
óbvias, claras e simples.
Segundo
divulgado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), no final de 2010 havia mais
de 83 milhões de processos em tramitação no Judiciário do país. Desse total,
pelo menos 32% seriam execuções fiscais, ou seja, cerca de 27 milhões de
processos.
O
número é expressivo, mas poderia diminuir bastante se fossem afastados os
mecanismos já disponíveis nesse setor (execuções fiscais) e que não são
acionados pelo Judiciário por simples acomodação ou mesmo desídia de seus
dirigentes ou, talvez, por desinformação de alguns magistrados.
O
primeiro e surpreendente caso que permitiria reduzir os processos, relaciona-se
com uma enorme quantidade de créditos fiscais alcançados pela prescrição
quinquenal.
A
pretexto de defender o tal “interesse público”, tais ações permanecem
indefinidamente ocupando espaço, até que o contribuinte, pressionado pelos
odiosos mecanismos de controle de crédito, acaba sucumbindo e paga o que não
deveria ser pago, porque extinto.
Em
muitos casos, os valores são pequenos e agora, com a nova lei destinada a fazer
a festa dos cartórios de protestos — autorizando o inútil, descabido e
vergonhoso protesto da dívida ativa —, esses contribuintes podem ser reduzidos a
párias, sem crédito para comprar qualquer coisa a prazo. Isso não atende ao
“interesse público”, pois obrigar alguém a pagar o que já foi extinto é crime,
previsto no artigo 316 do Código Penal. O crime, nesse caso, é praticado pela
autoridade que cobra o tributo já prescrito.
Mas
neste país, onde muitos servidores públicos se imaginam integrantes de uma
realeza que desfila em carruagens motorizadas com placas de bronze, não há
qualquer fiscal da lei que se disponha a apurar o crime de excesso de exação.
Pelo menos nestes 40 anos de advocacia nunca vi isso. Se alguém viu, me
avise.
Pois
bem. O contribuinte que se vê diante de uma execução fiscal alcançada pela
prescrição, quando citado e não aceitando ser vítima do crime ou não tendo
condições de pagar o que não deve, pode assim mesmo defender-se, ainda que não
tenha bens penhoráveis. Existe uma medida para isso, que é a exceção de
pré-executividade, criada pela prática jurisprudencial e que alguns desavisados
sustentam não ter base legal.
Embora
a jurisprudência não seja fonte formal do Direito, admite-se que ela seja dele
uma fonte subsidiária ou complementar, ao lado da lei e do costume. Assim, as
decisões dos tribunais exercem importante papel na construção do Direito, na
medida em que são seguidas pelas maior parte dos magistrados na aplicação da
lei. Esta, apresentando lacunas a serem interpretadas, não pode nem deve ser
interpretada ao pé da letra. As leis são criadas para servir o homem, não o
contrário.
A
chamada exceção de pré executividade pode e deve ser útil à solução dos litígios
que ocorrem nas execuções fiscais. Antiga lição de Pontes de Miranda ensina
que:
A penhora ou depósito somente é de exigir-se para a oposição de embargos do executado; não para a oposição das exceções e de preliminares concernentes à falta de eficácia executiva do título extrajudicial ou da sentença (...). Uma vez que houve alegação que importa em oposição de exceção pré-processual ou processual, o juiz tem de examinar a espécie e o caso , para que não cometa a arbitrariedade de penhorar bens de quem não estava exposto à ação executiva (...). (Revista Dialética de Direito Tributário, volume 24).
Diante
dessa e de outras lições e com base ainda em reiteradas decisões semelhantes, o
STJ baixou a Súmula 393, do seguinte teor: “A exceção de pré-executividade é
admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício
que não demandem dilação probatória” (relator ministro Luiz Fux, em 23 de
setembro de 2009).
O
STJ decidiu ser possível à pessoa apontada como devedora ofertar a exceção,
quando ausentes os requisitos que autorizam a cobrança do crédito fiscal ou
presentes os que a invalidem. Veja-se, a propósito, a ementa a seguir:
PROCESSUAL CIVIL -Agravo de Instrumento - Processo de Execução - Embargos do Devedor- Nulidade - Vício Fundamental - Arguição nos Próprios Autos da Execução - Cabimentos - Arts. 267, § 3º, 585, II, 586, I, do CPC.- I - Não se revestindo o título de liquidez, certeza e exigibilidade, condições basilares no processo de execução, constitui-se em nulidade, como vício fundamental,podendo a parte argui-la, independentemente de embargos do devedor, assim como pode e cumpre ao juiz declarar, de ofício, a inexistência desses pressupostos formais contemplados na lei processual civil. II - Recurso conhecido e provido. (REsp 13.060-SP, Ac. Un. da 3ª Turma, STJ - relator ministro Aldemar Zveiter, publicado no DJU de 3 de fevereiro 1992).
Portanto,
o contribuinte citado para pagar dívida prescrita ou já paga não está obrigado a
ofertar bens à penhora. O juiz pode e deve extinguir o feito, eis que ausentes
as razões de seu prosseguimento.
O
juiz que se recusar a processar a exceção, exigindo garantia ou, pior ainda,
determinando penhora de ativos financeiros, deve ser representado perante a
Corregedoria e o CNJ. Ele está, sem dúvida, atrapalhando o funcionamento do
judiciário, na medida em que mantém processo inútil e provoca mais
entupimento nas instâncias superiores do Judiciário. Demonstra que não tem
vocação para a carreira, que se destina a fazer justiça, não a avolumar a
burocracia judiciária.
O
professor Ives Gandra Martins já ensinou: “A função do Poder Judiciário é fazer
Justiça, e não assegurar a arrecadação, principalmente quando a qualidade do
crédito exigido é contestável.” (Gazeta Mercantil, 30 de abril de 2008)
Outra
situação muito estranha que vemos nos cartórios de execuções fiscais é a recusa
injustificada de reconhecer e aplicar a conexão de causas, sempre que isso for
possível, para tornar viável decisão única para mais de um processo. A conexão
mais óbvia ocorre quando a Fazenda distribui diversas execuções ao mesmo tempo,
ou em datas muito próximas, contra o mesmo contribuinte e em relação ao mesmo
tributo. Veja-se o conceito clássico:
CONEXÃO DE CAUSAS - Assim se diz das causas que se encontram tão intimamente ligadas, em que se nota uma relação tão estreita, que não podem ser conhecidas separadamente pelo julgador, visto que o julgamento de uma vem afetar o conteúdo da outra. (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense, Rio, 2ª Edição, 1967).
Ainda
recentemente verificamos um caso em que a municipalidade de São Paulo cobrava de
determinado contribuinte IPTU de dez exercícios diferentes, cinco dos quais
prescritos. O contribuinte quitou os que não haviam sido atingidos pela
prescrição e fez depósito em dinheiro para garantia dos prescritos, que
pretendia embargar.
Ao
ser informado pelo advogado sobre os custos dos honorários e despesas
processuais e, mais ainda, da certeza de que a municipalidade recorreria ao
TJ-SP e depois ao STJ, o que implica em grande demora, o contribuinte resolveu
não promover os embargos, aceitando ser vítima de uma injustiça. Arcou com o
prejuízo para não atrapalhar ainda mais o funcionamento do judiciário, ainda que
seu propósito fosse apenas livrar-se de um pesadelo.
Surgem
aqui duas posições diferentes. O contribuinte se vê frustrado, pois como cidadão
imaginava que o CTN , sendo uma lei (com status de complementar) seria cumprida,
assegurando-lhe o direito de não pagar o que está extinto. Se a lei é
instrumento da Justiça, o contribuinte se vê injustiçado, pois a lei não foi
cumprida.
O
servidor público, que cometeu o crime de excesso de exação, longe de se pensar
um criminoso, vê-se como herói, pois obrigou um cidadão (o seu patrão) a pagar o
que estava extinto. O advogado da municipalidade receberá honorários ao que
parece em pagamento pelo fato de ter permitido que o processo não andasse, por
não cumprir prazos, enfim, por não ter feito o que devia. Isso nada tem a ver
com Justiça Tributária.
Se
os magistrados da primeira instância seguissem a Súmula 393 do STJ e procurassem
aplicar o princípio da conexão nas execuções fiscais, certamente haveria uma
redução substancial das causas pendentes.
Por
outro lado, temos visto que de tempos para cá criaram-se mecanismos legais para
cobrar com maior rigor a dívida ativa. Isso é muito bom, mas já resvalou para a
negação dos princípios básicos da Constituição Federal, contidos no seu
preâmbulo.
Quando
o povo brasileiro elegeu os constituintes, foi com o objetivo de criar uma Carta
Magna, “para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias”.
A
lei 12.767/2012, que viabiliza o protesto da certidão de dívida ativa, vai
contra qualquer princípio democrático e transfere aos cartórios privados parte
do poder estatal, colocando em risco o exercício dos direitos sociais e
individuais, na medida em que dificulta a discussão da suposta dívida. Os ideais
descritos no preâmbulo foram atirados ao lixo.
Ao
mesmo tempo em que se criam dificuldades cada vez maiores para os contribuintes,
o Congresso (que dizem ser uma central de negócios com sede em Brasília) mantém
normas de proteção absurdas para a dívida ativa e para os servidores
encarregados de sua administração e cobrança.
Já
não fazem mais sentido, por exemplo, os prazos em dobro ou em quádruplo para a
Fazenda Pública recorrer seja em que caso for. Os prazos recursais devem ser os
mesmos a que se sujeitam os contribuintes, pois nada mais justifica tais
privilégios.
Hoje
os despachos e decisões judiciais são disponibilizados na internet e as
procuradorias e demais repartições estão equipadas, inclusive com recursos
humanos adequados, para os necessários acompanhamentos
Dentre
as formas de atrapalhar o funcionamento do judiciário uma das mais prejudiciais
é a que permite que os autos devam ser encaminhados à procuradoria, com os
prazos correndo só após o encaminhamento.
Se
numa determinada comarca os procuradores tiverem o hábito de se dirigirem ao
cartório apenas uma vez por mês, a coisa não anda. Nas grandes comarcas, consta
que os autos ficam se acumulando durante um bom tempo, até que haja um volume
enorme, que será levado por caminhão. Isso me foi dito por um servidor e espero
que não seja verdade.
Quem
também atrapalha muito o funcionamento do Judiciário são os órgãos de julgamento
administrativo, boa parte dos quais vem se transformando em meros homologadores
de autos. Se cumprissem de fato a missão para a qual foram criados, poderiam
ajudar na diminuição das causas tributárias que são levadas ao judiciário,
inclusive e especialmente no setor de execuções fiscais. Mas isso fica para mais
tarde.
Raul Haidar é jornalista e advogado
tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e
integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 24 de
junho de 2013
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