Contribuinte deve protestar, e não ser protestado
A lei 12.767, publicada no dia 28 de dezembro de 2012, resulta da conversão da MP 577, de 27 de agosto 2012, e sua ementa diz que ela trata de assuntos relacionados a energia elétrica e termina afirmando que “dá outras providências”. Dentre tais providências, uma delas certamente é causar um grande choque nos contribuintes e nas pessoas que se preocupam com a Justiça Tributária.
Esse choque está contido no seu artigo 25, que altera a lei 9.242/1997, que trata de protesto de títulos e documentos de dívida.
O artigo 1º dessa lei era claro e objetivo:
“Art. 1º- Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.”
Agora, a lei que trata de energia elétrica resolveu inventar um parágrafo único, com a seguinte fraude legislativa :
“Parágrafo único. Incluem-se entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas.”
Alterar uma lei específica, que trata de um determinado assunto, mediante o artifício de incluir a mudança em outro diploma legal sorrateiramente, como uma verdadeira muamba ou contrabando, é uma forma de fraudar o processo legislativo. Em nossa coluna anterior já registramos nosso protesto:
"A Lei Complementar 95 de 26/2/1998 é muito clara em seu artigo 7º, inciso II a ordenar que a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão.
Ora, cada lei deveria tratar exclusivamente de um determinado assunto, exposto com clareza em sua ementa. Caso contrário, quando alterar o Código de Transito, o congresso pode enfiar um adendo regulando o uso da maconha, ou ao legislar sobre a criação de gado, por exemplo, tentar ali regular o exercício da prostituição. Como se sabe, a imaginação dessa gente não tem limites.”
Todos sabemos que as Medidas Provisórias são permitidas nas condições determinadas pelo artigo 62 da Constituição Federal. O caput do artigo exige duas condições básicas: relevância e urgência.
A MP 577 é de agosto de 2012 e na sua redação original não havia qualquer menção à lei 9.492 ou a títulos de crédito, dividas ou protestos, assuntos que, obviamente, não fazem parte daquele grupo de matérias que admite uma MP: relevância e urgência. Se alguém pretende mudar a lei de 97, deve apresentar projeto ao congresso, não ficar de tocaia em algum gabinete para lá inserir sua muamba.
Por outro lado, não encontramos nenhuma indicação de que esse acréscimo (o tal parágrafo único) tenha sido debatido por alguém. Não se sabe quem seja o autor dessa monstruosidade. Todavia, há fortes indícios de que tal norma, que muda uma lei com mais de 15 anos de vigência, seja resultado de mecanismo não democrático, criado por alguém que tenha interesse em aumentar o lucro dos cartórios ou sacanear ainda mais os contribuintes brasileiros. Ou mesmo, quem sabe, ofender, menosprezar e ridicularizar o Poder Judiciário. Talvez seja uma safadeza contra o Judiciário, mais especificamente contra o STJ, corte que nessa matéria diz a palavra final, posto que se trata de questão infraconstitucional.
Quem pesquisar verá, sem grandes dificuldades, que o STJ inúmeras vezes decidiu (sempre no mesmo sentido) que:
“Se a CDA comprova o inadimplemento do débito fiscal, gozando inclusive de presunção de certeza e lilquidez, não há sentido em admitir que ela seja levada a protesto, porque a finalidade deste, nos termos do art. 1º da Lei 9.492/1997 é a prova do inadimplemento e o decumprimento da obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida. A única forma de se cobrar dívida fiscal é por meio de execução fiscal e, para tanto, basta que a Fazenda Pública instrua a petição inicial executiva com a CDA. Assim, o protesto não se enquadra no procedimento legal previsto para a cobrança da dívida ativa.” (AgrRg no Rec. Esp. 1.277.348, Relator Min. Cesar Asfor Rocha).
O Conselho Federal da OAB obteve sentença datada de 14 de setembro de 2012 – Processo 30732-61.2012.4.01.3400, em que o juiz Marcelo Velasco Nascimento Albernaz, da 13ª Vara da Justiça Federal no Distrito Federal, julgou procedente o pedido para anular a Portaria Interministerial 574-A de 20/12/2010, onde se pretendia legitimar os aludidos protestos.
Ao que parece essa aberração jurídica, que se materializou na muamba legislativa, teve inspiração no Ministério da Fazenda, que imagina ser possível o contribuinte em débito pagar sua dívida fiscal para evitar o protesto.
Não são necessárias grandes e dispendiosas pesquisas para saber que o protesto neste caso serve apenas para prejudicar um pouco mais aquele que já está prejudicado pelos índices pífios de crescimento econômico, pela carga tributária insuportável e pela burocracia asfixiante.
Quem já está com dívida ativa inscrita e sujeito a execução fiscal, pode ter seus bens penhorados e suas contas bancárias bloqueadas. Se além disso tudo ainda tiver protesto, certamente ficará impedido de exercer suas atividades básicas, como, por exemplo, manter conta bancária, operar com cartões de crédito, fazer compras a prazo, etc.- Ou seja: não se trata de cobrança, mas, do ponto de vista comercial, trata-se de PENA DE MORTE! O empresário que tiver título protestado não conseguirá, por exemplo, descontar uma duplicata que lhe permita pagar o salário de seus empregados. A morte economica será do empresário, mas terá reflexos amplos na sociedade.
Muitas e muitas vezes essas CDAs decorrem de dívidas inexistentes, prescritas ou resultantes de autuações sem fundamento. Já tivemos oportunidade de cancelar execuções fiscais utilizando singela exceção, ante a ocorrência de prescrição quinquenal. Aliás, o simples fato de encaminhar a juizo uma execução flagrantemente prescrita, deveria resultar em pena pecuniária ao exequente e pena disciplinar a seu advogado que negligenciou no trabalho.
Já é muito difícil para o contribuinte defender-se desses abusos, pois na execução fiscal é obrigado a oferecer garantias ou ter bens penhorados. Para sua defesa terá que contratar advogado e eventualmente custear perícias ou produção de outras provas, enfim, desde o início coloca-se como vítima ou, na melhor das hipóteses, na desconfortável posição do litigante que já entra na briga desarmado, diminuído, pois todas as vantagens e presunções pertencem ao exequente, inclusive com prazos judiciais absurdamente mais amplos. Como se sabe, no judiciário brasileiro só nós, advogados, é que estamos sujeitos a prazos.
A Constituição garante a todos os seus direitos, assegurados o contraditório e a ampla defesa. A Fazenda Pública já tem a seu favor a presunção de certeza e liquidez da sua dívida ativa. Já são privilégios exagerados, especialmente se levarmos em conta a enormidade de abusos que as autoridades perpetram contra as pessoas comuns.
Uma lei que resulta de MP sobre assunto realmente relevante e urgente (energia elétrica), não pode ser legitimada se acaba desviando seu foco e alterando outras normas legais que em nada se relacionam com o objetivo anunciado. A questão do protesto não fazia parte da redação original da MP e nem consta a existência de qualquer debate sobre esse acréscimo. Embora a matéria possa ser de iniciativa privativa da presidente (Constituição Federal artigo 61, parágrafo 1º), é bom lembrar que ainda não se ressuscitou aquele monstro chamado decreto-lei. Quem tem que protestar somos nós! Temos que protestar, não ser protestados!
Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2013
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