LEGISLAÇÃO

terça-feira, 22 de outubro de 2013

JUSTIÇA TRIBUTÁRIA

  
Serão os fiscos brasileiros esquizofrênico

De uns tempos para cá, os contribuintes brasileiros têm sido surpreendidos com medidas praticadas pelas autoridades fazendárias que aumentam absurdamente a insegurança jurídica em que vivemos.
Atos administrativos são baixados com efeitos retroativos, ao arrepio das mais elementares normas do Direito Tributário, a ponto de podermos afirmar que, em assuntos fiscais, até o passado é imprevisível. E isso em todos os níveis de governo.
Âmbito federal
No nível de Brasília, os mais recentes exemplos são as Instruções Normativas 1.394 e 1.397, respectivamente dos dias 12 e 16 de setembro de 2013. A primeira pretende regular a isenção do Imposto de Renda e das contribuições das instituições de educação. A segunda cuida do chamado RTT - Regime Tributário de Transição — que tem a ver com as empresas sujeitas à escrituração contábil na forma da Lei 11.638.
Deseja a IN 1.394 que seja mudado o sistema de tributação do Prouni (Programa de Bolsas de Estudo) para que as faculdades, que concedem bolsas de estudo com isenção sejam obrigadas a pagar adicional sobre o lucro que teriam.
Nesse ponto, o ato administrativo é absolutamente inconstitucional. Não se cria ou se aumenta imposto a não ser por meio de lei. Ademais, a lei 11.096/2005, que criou o Prouni, não criou uma isenção simples, mas acompanhada de obrigações, sujeitas a fiscalização da autoridade competente.
Foram esses incentivos, acompanhados de obrigações razoavelmente bem definidas, que viabilizaram o interesse de investidores no ensino superior que vem se profissionalizando desde então.
Ora, a lei que criou o Prouni prevê que suas regras, incluído o tratamento tributário diferenciado, sejam válidas por dez anos. Não pode um ato administrativo romper o que a lei garante.
Imediatamente após a divulgação da IN 1.394, a Bolsa de Valores já registrou quedas nas ações das empresas educacionais.
Com relação à IN 1.397, o deputado Alfredo Kaefer (PSDB-PR) apresentou projeto para derrubá-la, ante seus evidentes equívocos. Deseja o ato normativo, que as empresas tenham de fazer mais de um balanço , além de estabelecer limites não previstos na lei para a isenção dos lucros distribuídos aos sócios e já tributados na pessoa jurídica.
Tudo isso não só causaria um aumento maior da burocracia nas empresas, mas traria desestímulo ao empreendedor, que poderia ganhar mais na especulação do que no seu trabalho como empresário.
Ademais, muitas normas da IN 1.397 são desnecessárias, posto que já definidas com clareza na legislação superior (leis e decretos). Tal é o caso, por exemplo, das regras que tratam do conceito de lucro real e ajustes ao lucro líquido.
Ato normativo que altera a lei é nulo e se apenas o repete é inútil. Além do mais, autoridades fazendárias chegaram a anunciar que as normas da IN seriam aplicadas retroativamente, desde 2008, o que poderia simplesmente levar à insolvência muitas empresas. Note-se que poderá alcançar mais de um milhão de empresas que recolhem o IR pelo lucro presumido, conforme uma estimativa divulgada pela Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Valor Econômico, 29/9).
Portanto, ambas as IN devem ser consideradas nulas de pleno direito, por contrariar o sistema tributário brasileiro, à vista das disposições constitucionais e do CTN.
Quanto aos estados
As autoridades tributárias dos estados também se esforçam para se tornar parecidas com o pessoal do Planalto. Veja-se, por exemplo, o que vem acontecendo há anos com essa emocionante novela chamada “Guerra Fiscal”.
Todos os governadores, sem exceção, desde sempre juram que as arrecadações dos estados que administram não são suficientes para fazer o que precisam. Por outro lado, é razoável que desejem o progresso de seu povo.
Para incentivar a instalação de novos empreendimentos — principalmente
indústrias —, os governos estaduais criam diversos benefícios. Quando se trata de investimento novo, com a possibilidade de gerar grande número de empregos, existe envolvimento até mesmo dos municípios, que fazem questão de doar os terrenos necessários.
Mas alguns estados criaram mecanismos diferentes, dadas as suas próprias características. Isso ocorreu, por exemplo, em Santa Catarina e no Espírito Santo, interessados em desenvolver seus portos marítimos, utilizando-os como instrumentos de arrecadação e estímulos fiscais.
No Espírito Santo criou-se um sistema de financiamento para dar prazos maiores para as empresas lá estabelecidas. Tal sistema é denominado Fundap e definido como um financiamento para apoio a empresas com sede nesse estado e que realizem operações de comércio exterior tributadas com ICMS em seu território. 
A legislação daquele estado admite que as empresas industriais que se utilizam de insumo importado podem se habilitar aos financiamentos Fundap criando uma filial especializada em comércio exterior. A condição básica para o financiamento Fundap é o fato gerador do imposto e a necessidade do recolhimento nesse estado. 
Já em Santa Catarina o incentivo fiscal é feito por meio de créditos presumidos, que reduzem a base de cálculo do imposto, desde que o importador seja estabelecido no estado e mantenha determinado número de empregos.
Essa variedade de incentivos cria erros de interpretação e de certa forma vai de encontro aos princípios básicos do imposto, especialmente o da não cumulatividade.
RUY BARBOSA NOGUEIRA, emérito Professor da Universidade de São Paulo, em Parecer publicado na Coletânea “Direito Tributário Atual”, Volume 7/8, páginas 2028/2029 (Editora Resenha Tributária, S.Paulo, 1988) ensina que:
O ICM é essencialmente um imposto interno e por dentro. Incide sobre a circulação de mercadoriasdentro do território nacional. Além disso, dentro do princípio de que se exportam bens e serviços e não se exporta imposto, porque estes prejudicariam a capacidade competitiva (porque acarretam a bitributação internacional) o ICM é um dos mais típicos impostos internos; é um dos impostos do consumo interno. (Grifos nossos). 
O grande erro da legislação do ICMS ocorreu na CF de 1988, quando o imposto, ao acrescentar os serviços, afastou-se da sua linha fundamental de ser um imposto interno e, principalmente, não cumulativo.
Ao atribuir todos os seus problemas de caixa a uma suposta guerra fiscal, os governadores exageram e fogem da sua responsabilidade.
Com relação aos municípios
Os administradores tributários de nossos municípios — a começar da capital paulista — precisam viver na realidade. Aprender a gastar só o que arrecadam e não jogar dinheiro fora.
Mas, antes de tudo, precisam ganhar o respeito dos munícipes. Em coluna publicada em 7 de outubro de 2013 — clique aqui para ler —, defendi que o IPTU é um imposto justo e que todos devemos pagá-lo de forma correta, sobre o valor real do imóvel. Muitos leitores não concordaram, por não estarem satisfeitos com os serviços recebidos. 
Nós, advogados, sabemos que impostos são tributos não vinculados, ou seja, seu pagamento não tem relação com serviços prestados ao contribuinte.
O importante é que o cidadão seja tratado como tal, com o respeito que merece. Eis aí um trabalho de cidadania difícil de ser implantado numa cidade como a nossa onde há pessoas que dormem nas calçadas, ruas ficam às escuras por conta do furto de fios, enfim, uma série de problemas a resolver.
Respeito também é dar atendimento rápido nas repartições, pagar salários decentes aos professores municipais e deles exigir um bom trabalho, enfim, é fazer uma cidade em que valha a pena viver.
Todavia, as autoridades fazendárias municipais se esmeram na arte de complicar nossa vida, com uma burocracia infernal, seja para aprovar uma planta, seja para abrir ou encerrar um pequeno negócio.
E cadê a esquizofrenia?
A essa altura, o leitor poderá indagar: o que a esquizofrenia tem a ver com tudo isso? Ora, meus caros, vamos ao conceito clássico da doença:
A esquizofrenia é uma doença psiquiátrica endógena, que se caracteriza pela perda do contato com a realidade. A pessoa pode ficar fechada em si mesma, com o olhar perdido, indiferente a tudo o que se passa ao redor ou, os exemplos mais clássicos, ter alucinações e delírios. Ela ouve vozes que ninguém mais escuta e imagina estar sendo vítima de um complô diabólico tramado com o firme propósito de destruí-la. Não há argumento nem bom senso que a convença do contrário.
Vendo o primeiro item grifado: o servidor fazendário perde contato com a realidade quando pensa que nós somos seus empregados e chega a nos “dar ordens” como, por exemplo, no estabelecimento do contribuinte, ordenar que ele leve os livros à repartição, quando ele, servidor, está ali mesmo e pode levá-los.
A autoridade fica fechada em si mesma e indiferente a tudo o que se passa ao redor. A repartição está cheia de contribuintes aguardando atendimento, mas o servidor tem outras coisas a fazer: navegar no facebook, por exemplo. Enquanto isso, a fila que se lixe.
O servidor também costuma ter alucinações e delírios quando pensa ser detentor de um poder que só  existe na sua imaginação. Comete uma arbitrariedade qualquer, apreendendo um computador, por exemplo, e afirma, categoricamente, que ele jamais será devolvido, por ser uma prova. Todavia, fica bem calmo quando recebe o mandado judicial expedido no mandado de segurança que ordena a imediata devolução da tal prova.
Finalmente, completando o quadro esquizofrênico, imagina-se vítima de um complô diabólico quando, após fazer e falar um monte de besteiras, seus superiores sugerem que ele mude para outro setor, de preferência em outro estado e ele prontamente aceita a sugestão.
Conclusão: Já está na hora de revisarmos os nossos conceitos em relação aos relacionamentos que devemos manter com as autoridades tributárias. Como não parece que elas acreditam no estado democrático de direito e nas nossas garantias individuais e coletivas, precisamos nos aprimorar cada vez mais e nos prepararmos para o pior. Não sei onde foi que ouvi a frase da qual lembro agora: “Nada está tão ruim que não possa piorar”.

Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 21 de outubro de 2013


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