Figura do encomendante é uma quimera para aduana brasileira
Antes de mais nada, lembremos que
quimera, segundo dicionário da língua portuguesa, é definido como sendo uma
“criação absurda da imaginação; fantasia, utopia, sonho”.
Temos presenciado
que a aduana brasileira, sob o legitimo combate às práticas reprováveis no
âmbito do comércio internacional, criou uma verdadeira quimera quanto à figura
do encomendante e, muitas vezes, cunha uma operação de importação lícita de
fraudulenta.
A raiz do problema
encontra-se no entendimento da fiscalização aduaneira. Motivada pela Lei
11.281/06, artigo 11º, e pela a IN SRF 634/06, os Auditores-Fiscais aduaneiros
passaram a entender que, numa operação de importação por conta própria, é vedado o
importador saber para quem irá efetuar a revenda do produto.
Se souber, deveria ter operado na modalidade por encomenda.
Então, por exemplo,
uma empresa que distribua produtos importados, estaria proibida de trabalhar
seu estoque na forma just-in-time. Ou ainda, customizar esses
produtos, posto que uma vez customizados, a receita identifica que há um
destinatário previamente sabido e, então, seria vedado no caso a importação por
conta própria, devendo forçosamente o importador operar na modalidade
importação por encomenda ou por conta e ordem de terceiros.
Todavia, será que
uma vez possuindo o importador um cliente pré-definido para o produto a ser
importado, estaria cometendo simulação e fraude caso importe por conta própria?
Cliente
Pré-Definido x Encomendante Predeterminado
A interposição fraudulenta de terceiros, na seara do comércio internacional, consiste na prática se ocultar o verdadeiro “mandante” da operação de importação. Com isso, pretende-se que o verdadeiro beneficiado não apareça nos documentos que amparam o desembaraço aduaneiro.
A interposição fraudulenta de terceiros, na seara do comércio internacional, consiste na prática se ocultar o verdadeiro “mandante” da operação de importação. Com isso, pretende-se que o verdadeiro beneficiado não apareça nos documentos que amparam o desembaraço aduaneiro.
Os motivos podem
ser os mais diversos: lavagem de dinheiro, sonegação de tributos,
subfaturamento, quebra da cadeia do IPI etc. Daí, o articulador por detrás fica
ocultado, se utilizando de “laranjas” para burlar o fisco.
Quem não se recorda
da grife de luxo Daslú e a operação “narciso”, da Polícia Federal? O esquema
montado para a prática de descaminho e sonegação fiscal nada mais era do que
uma interposição fraudulenta de terceiros. A coibição de tal modus
operandi merece todo rigor por parte da Aduana brasileira, sem sombra
de dúvida.
A interposição fraudulenta
de terceiros foi positivada no nosso ordenamento por meio da nova redação ao
artigo 23 do Decreto-Lei 1.455/76, instituindo a aplicação a pena de perdimento
das mercadorias na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor,
comprador ou responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, incluindo
aí a interposição fraudulenta de terceiros.
Em 2006, veio a Lei
11.281/06, fruto da conversão da MP 267/2007, que em seu artigo 11 positivou a
figura da importação por encomenda, estabelecendo que: “A importação promovida
por pessoa jurídica importadora que adquire mercadorias no exterior para
revenda a encomendante predeterminado não configura importação por conta e
ordem de terceiros”.
Ato contínuo, a
SRFB editou a IN nº 634/06, que veio estabelecer requisitos e condições para a
atuação de pessoa jurídica importadora em operações procedidas para revenda a
encomendante predeterminado.
A par disso tudo, a
expressão “revenda a encomendante predeterminado” trouxe aos
Auditores-Fiscais da Aduana brasileira a ideia que passou a ser proibido ao
importador saber para quem venderá a mercadoria importada.
Por exemplo, o
Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil Remy Deiab Junior, em artigo
publicado na internet, ao conceituar a importação por conta própria, define que
o importador não pode saber previamente para quem irá revender a mercadoria
após a nacionalização. Vejamos:
“Consiste na
modalidade usual de importações diretas (...) Depois de desembaraçado o produto
industrializado de procedência estrangeira, emitida a correspondente nota
fiscal de entrada e escriturada a entrada no seu estoque, a importadora,
agregando margem de lucro, providencia a sua posterior venda no mercado
interno, para clientes não definidos previamente.”
Temos ainda presenciado
inúmeros autos de infração impostos pela Aduana, em que o importador é acusado
de estar cometendo uma interposição fraudulenta de terceiros somente pelo fato
de ser conhecido a quem será vendida a mercadoria após nacionalizada.
Esse entendimento
força a ideia de que a importação por conta própria somente pode ser aquela em
que o importador nacionaliza as mercadorias, estoca e, só depois, pode ter um
pedido de venda. É como se fosse a brincadeira da “cabra-cega”. Não se pode
saber antecipadamente para quem será vendido o produto a ser nacionalizado.
De ante mão nos
parece que esse entendimento não se coaduna aos conceitos legais e operacionais
relativos à livre iniciativa, propriedade privada e liberdade das formas.
Todavia, para melhor definir a questão, iremos analisar as modalidades de
importação previstas e as premissas da fiscalização aduaneira.
Modalidades de
Importação Previstas
Como sabemos, existem hoje no Brasil três modalidades de importação: a importação por conta própria, importação por encomenda e a importação por conta e ordem de terceiros.
Como sabemos, existem hoje no Brasil três modalidades de importação: a importação por conta própria, importação por encomenda e a importação por conta e ordem de terceiros.
Essas duas últimas
modalidades se prestam às empresas que desejam terceirizar uma
ou mais atividades relacionadas à execução e gerenciamento dos aspectos
operacionais, logísticos, burocráticos, financeiros, tributários, entre outros,
das operações de importação de mercadorias.
Já a operação por
conta própria é aquela em que não há terceirização da atividade. A importadora
realiza por sua conta própria a operação. Por essa razão, deve constar como
única responsável em todos os documentos inerentes ao comércio internacional e,
assume todos os riscos da operação.
Em nosso estudo
iremos focar na operação por conta própria, já que é nessa modalidade que a
Aduana defende ser ilegal o importador saber antecipadamente à importação o
destino que será dado à mercadoria (no caso, a quem será vendido).
Nesse seguir,
importante trazer a definição da Secretaria da Receita Federal do Brasil de
importação por conta própria, descrita na solução de consulta da 7ª RF DISIT nº
119, de 30 de abril de 2007:
“MINISTÉRIO DA
FAZENDA
SECRETARIA DA
RECEITA FEDERAL
SOLUÇÃO DE CONSULTA
Nº 119 de 30 de Abril de 2007
EMENTA: IMPORTAÇÃO
POR CONTA PRÓPRIA, REVENDA POR DISTRIBUIDOR. A pessoa jurídica ao praticar
todos os atos de comércio internacional com independência e seus próprios
recursos, sendo o único responsável pela fase comercial, logística de
transporte, desembaraço, pagamento de tributos, arcando com a contabilização e
revenda das mercadorias nacionalizadas a Distribuidor interno, está praticando
ato de comércio de compra e venda, não se configurando a encomenda prevista na
Instrução Normativa SRF nº 634, de 2006.”
Então, podemos
conceituar a importação por conta própria como sendo aquela em que o importador
é o responsável no Brasil pela garantia, qualidade do produto, assistência
técnica, reposição, troca, lucro e prejuízo da operação, agindo com
independência e seus próprios recursos.
Responde ainda por
todos os riscos consumeristas, concorrenciais, propriedade intelectual,
sanitários e regulatórios.
Percebe-se portanto
a diferença gritante desse modus operandi importação por conta
própria, para quando estamos diante uma importação por encomenda ou por conta e
ordem de terceiros, em que toda a responsabilidade do produto frente ao
encomendante/adquirente é da fornecedora estrangeira.
Quem já teve a
oportunidade de analisar um contrato de importação por encomenda e/ou por conta
e ordem de terceiros sabe desse fato: os riscos da operação e do produto, nesse
caso, são do encomendante.
Temos aí senão a
característica mais marcante. Numa operação de importação por encomenda ou
conta e ordem, o importador não assumiria tais ônus, que ficariam na conta do
encomendante/adquirente versus a exportadora.
Vamos imaginar
agora título de exemplo que uma empresa brasileira tenha firmado um contrato de
distribuição de produtos cosméticos, sendo que a fornecedora situa-se no
exterior.
Nesse exemplo, é a
empresa brasileira que tem o domínio do mercado do produto; que presta
garantia; cuida da reposição; da qualidade do produto; dá troca e, dá o
atendimento pós venda, atuando diretamente como negociante e importador da
mercadoria, desde os trâmites iniciais da operação, pactuando com o fornecedor
no exterior os detalhes do negócio e assumindo todos os riscos da importação.
Vamos supor que o
empresário, com a finalidade de melhorar seu capital de giro, adote o
sistema jus-in-time de gestão de estoques, isto é, a aquisição
junto ao fornecedor estrangeiro é precedida de um ou mais pedidos de compra.
Essa é uma
realidade da atividade empresarial: diminuir ao máximo a imobilização do
capital de giro em estoque. Tudo é uma questão logística entre o pedido de
compra do cliente e o prazo de entrega.
Além disso, vamos
supor que alguns dos clientes da nossa distribuidora solicitassem que os
produtos fossem personalizados. Ou seja, os produtos seriam customizados com a
logomarca do cliente, com a sua identidade visual. Ou que a nossa distribuidora
desenvolvesse essa forma de atuar, identificando que poderá atender novos
clientes, ou aumentar o valor agregado do produto.
Nesses dois casos,
nada mudou. Nossa distribuidora de cosméticos continua sendo a responsável pela
garantia, qualidade do produto, assistência técnica, reposição, troca, agindo
com independência financeira, lucro e prejuízo etc., respondendo por todos os
riscos consumeristas, concorrenciais, propriedade intelectual, sanitários e
regulatórios.
Porém, teríamos aí
clientes definidos previamente. A operação não seria aquela prevista no
imaginário da Aduana, em que não se pode saber previamente à quem seriam
vendidos os produtos. E agora?
Legislação não veda
clientes pré-definidos.
Não é verdade que o artigo 11 da lei 11.281/06 proíbe ao importador ter pedidos de compra realizados antes da importação/embarque dos produtos no exterior.
Não é verdade que o artigo 11 da lei 11.281/06 proíbe ao importador ter pedidos de compra realizados antes da importação/embarque dos produtos no exterior.
O sentido da
mencionada lei é diferenciar a operação de revenda à encomendante
pré-determinado da operação por conta e ordem de terceiros.
Vejamos que o art.
11 da Lei 11.281/06 define expressamente que “A importação promovida por pessoa
jurídica importadora que adquire mercadorias no exterior para revenda a
encomendante predeterminado não configura importação por conta e ordem de
terceiros”. É notoriamente ilegal o entendimento no sentido que a compra e
posterior venda para comprador predeterminado representa conta e ordem de
terceiros.
Não surge do texto
legal a noção de obrigatoriedade no sentido de que TODAS as operações comércio
exterior estariam obrigadas à operação de importação por encomenda, no caso de
existir um comprador pré-definido. Nesse sentido, algumas soluções de consulta
da SRFB:
“SOLUÇÃO DE
CONSULTA Nº 9 de 31 de Marco de 2010
EMENTA: IMPORTAÇÃO PARA ENCOMENDANTE PREDETERMINADO. REQUISITOS. BENS IMPORTADOS PARA INDUSTRIALIZAÇÃO. INAPLICABILIDADE. A importação de bens de produção destinados à atividade industrial do importador, ainda que adquiridos no exterior mediante especificações da pessoa jurídica a quem será vendido o produto final, está fora do campo de incidência da IN SRF nº 634/2006, cujos procedimentos de controle são aplicáveis à importação de mercadorias destinadas a revenda a encomendante predeterminado.”
EMENTA: IMPORTAÇÃO PARA ENCOMENDANTE PREDETERMINADO. REQUISITOS. BENS IMPORTADOS PARA INDUSTRIALIZAÇÃO. INAPLICABILIDADE. A importação de bens de produção destinados à atividade industrial do importador, ainda que adquiridos no exterior mediante especificações da pessoa jurídica a quem será vendido o produto final, está fora do campo de incidência da IN SRF nº 634/2006, cujos procedimentos de controle são aplicáveis à importação de mercadorias destinadas a revenda a encomendante predeterminado.”
“SOLUÇÃO DE
CONSULTA Nº 18 de 25 de Fevereiro de 2013
ASSUNTO: Imposto sobre a Importação – II
EMENTA: IMPORTAÇÃO. PESSOA FÍSICA. CONTA E ORDEM. ENCOMENDA. A importação por conta e ordem de terceiros e a importação por encomenda são operações vedadas a pessoas físicas, seja como importador, adquirente ou encomendante.”
ASSUNTO: Imposto sobre a Importação – II
EMENTA: IMPORTAÇÃO. PESSOA FÍSICA. CONTA E ORDEM. ENCOMENDA. A importação por conta e ordem de terceiros e a importação por encomenda são operações vedadas a pessoas físicas, seja como importador, adquirente ou encomendante.”
O que queremos
demonstrar com as soluções de consulta acima colacionadas é que, caso fosse
verdade que existisse na lei a proibição que reina no imaginário da Aduana,
jamais a SRFB admitiria as hipóteses supramencionadas.
Existe um abismo
entre uma operação fraudulenta, ou seja, aquela realizada com o intuito de
esconder o real interessado da importação, e aquela em que o importador por
conta própria opta por importar os produtos já tendo um pedido de compra.
O pedido de compra
(realizado antes mesmo do embarque da mercadoria) é bem diferente de uma efetiva
solicitação de importação, seja por encomenda ou seja por conta e ordem de
terceiros.
Pensar ao contrário
significa admitir que qualquer empresa que fosse adquirir um produto que
sabidamente não é fabricado no Brasil, deveria antes checar o estoque da
fornecedora. Do contrário, estaria praticando uma fraude, posto que
forçosamente deveria figurar como importadora por encomenda.
A pergunta a ser
respondida para se verificar se há interposição fraudulenta ou não é: quem foi
o responsável pela fase comercial, financeira, logística de transporte,
desembaraço, pagamento de tributos, garantia, reposição de peças, troca e
qualidade do produto, arcando com a contabilização e revenda das mercadorias
nacionalizadas?
Se as respostas
para essas perguntas apontarem para a empresa importadora, inexistirá qualquer
interposição fraudulenta de terceiros motivada pelo único fato da importadora
ter um comprador pré-definido.
Conclusão
Não se nega a legitimidade do combater as fraudes aduaneiras.Todavia, com o devido respeito aos que pensam em contrário, tratar uma operação de importação por conta própria de fraudulenta, unicamente por existir um comprador-pré-definido, é uma alteração indevidade conceitos legais e operacionais relativos à livre iniciativa e propriedade privada, adotados de boa-fé e dentro das regras legais vigentes.
Não se nega a legitimidade do combater as fraudes aduaneiras.Todavia, com o devido respeito aos que pensam em contrário, tratar uma operação de importação por conta própria de fraudulenta, unicamente por existir um comprador-pré-definido, é uma alteração indevidade conceitos legais e operacionais relativos à livre iniciativa e propriedade privada, adotados de boa-fé e dentro das regras legais vigentes.
Intepretação essa
querestringe um dos fundamentos do próprio Estado brasileiro estampado na
Constituição Federal vigente (art. 1º), qual seja, a livre iniciativa e ainda,
da ordem econômica (art. 170), penalizando indevidamente o administrado, que
age de modo lícito e legítimo.
Tal interpretação
esbarra ainda em dois limites fundamentais e básicos para a prática do ato
administrativo, primeiro, que a ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer,
senão, em virtude de lei (Princípio da Legalidade – ART. 5º, II da cf/88) e
mais, à Administração Pública só é permitido agir conforme previsão legal (art.
37, caput, CF/88).
Portanto,
concluímos que uma vez presentes todos os requisitos inerentes a uma operação
de importação por conta própria, cunhar tal operação de fraudulenta somente
pelo fato de ter um comprador-pré-definido, inclusive qualificando-o de
encomendante ocultado, é uma quimera.Imprimir
Rogério David Carneiro é
advogado e sócio diretor do escritório David & Athayde Advogados.
Especialista em Direito Tributário pela PUC-RJ e em Direito Privado Pela
UFF-RJ.
Revista Consultor
Jurídico, 15 de outubro de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário