Brasil pune contribuinte que investe em educação
Tarquínio, o Soberbo, último rei de Roma, criminalizou a iniciativa
do seu antecessor de tributar cada um segundo as suas possibilidades[1].
No
Brasil não chegamos a tanto, mas sequer no imposto de renda das pessoas físicas
– o tributo mais bem aparelhado para captá-la – levamos a sério a capacidade
contributiva.
Exemplo
disso é o ínfimo limite de abatimento das despesas com educação, objeto da
recente ADI nº 4.927, que elaborei por honrosa delegação do Conselho Federal da
OAB (clique aqui para ler).
Segundo
a alínea b do inciso II do art. 8º da Lei nº 9.250/95,
são dedutíveis da base de cálculo do IRPF os pagamentos feitos a instituições de
ensino, do infantil à pós-graduação, passando pela educação profissional.
Na
forma dos itens 7 a 9 do mesmo inciso, tais descontos ficam sujeitos ao teto
individual (para o contribuinte e cada um de seus dependentes) de R$ 3.091,35
para o IRPF 2012/2013, R$ 3.230,46 para o IRPF 2013/2014 e R$ 3.375,83 para o
IRPF 2014/2015.
Dois
são os déficits desse sistema:
●
a sua insuficiência objetiva, por não contemplar atividades essenciais à formação e ao
aprimoramento intelectual e profissional do cidadão, como a aquisição de
material didático, as aulas particulares e os cursos de idiomas, de artes e
pré-vestibulares;
●
a sua insuficiência quantitativa, por estabelecer — quanto às rubricas
autorizadas — limite de dedução claramente irrealista.
A
ação direta, distribuída à Ministra ROSA WEBER, volta-se apenas contra o segundo
ponto, dadas as dificuldades de execução de julgado que reconheça
inconstitucionalidade por omissão.
Pois
bem: a Constituição dá a máxima importância à educação, a qual define como
direito social (art. 6º), direito de todos e dever do Estado, da família e da
sociedade (arts. 205 e 227) e atribuição comum das três ordens de governo (art.
23, V).
O
art. 208, porém, limita à educação básica o dever de prestação universal e
gratuita (inciso I), não prevendo mais do que a “progressiva universalização do ensino
médio gratuito” (inciso II), e nem
isso em relação ao ensino superior (inciso V) e ao profissionalizante (art. 214,
IV).
Apesar
dos rigores da Carta — responsabilidade do administrador em caso de
não-oferecimento da educação básica (art. 208, § 2º) —, ninguém ignora que este
mínimo não chega a ser plenamente cumprido.
Donde
a significativa participação das instituições particulares na educação
brasileira: 36% do contingente das creches, 24% das pré-escolas, mais de 12% do
ensino fundamental, 56% do profissionalizante[2] e mais de
70% do superior[3].
É
também sabido que, com honrosas exceções, a instrução pública não-universitária
sofre de um déficit qualitativo em comparação com a particular, o que é
comprovado por dados oficiais do Ministério da Educação[4].
Ciente
da dupla insuficiência, quantitativa e qualitativa, do serviço público, a
Constituição franqueia o setor à iniciativa privada (art. 209) e garante a
liberdade de escolha do cidadão (art. 206, III).
Segundo
excelente estudo de ANDRÉA ZAITUNE CURI, NAÉRCIO AQUINO MENEZES FILHO e ERNESTO
MARTINS FARIA sobre o ensino médio em escolas privadas paulistas, o custo anual médio das que obtiveram nota maior ou igual
a 60% na prova objetiva do ENEM de 2006 superava os R$ 19.300,00; o daquelas com
nota entre 50% e 60% era de R$ 11.700,00; e mesmo o daquelas com nota inferior a
50% beirava os R$ 7.000,00[5].
Dentre
as 10 escolas com melhores notas nacionais no ENEM de 2011, apenas uma era
pública. Dentre as particulares, as mensalidades para o 3º ano do ensino médio iam de R$
780,00 a R$ 3.552,00, numa média de R$ 1.588,00.
Os
números do ensino superior, embora menores, situam-se também muito acima do teto
de dedução atualmente em vigor[6].
Em
prova adicional de que reconhece a incapacidade do Estado, na atual quadra
histórica, para satisfazer de forma direta e integral a demanda por instrução, a
Constituição imuniza a impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços as
instituições educacionais sem fins lucrativos que atendam aos requisitos da lei
(art. 150, VI, c), exoneração
que em alguns casos alcança as contribuições para a seguridade social (art. 195,
§ 7º).
Essas
franquias tributárias – que seriam odiosas se a opção pela rede particular
pudesse ser considerada um capricho – constituem sinalização inequívoca do
constituinte quanto às prestações negativas que impõe ao Poder Público em favor
da educação.
De
fato, sendo a um tempo decorrência e pressuposto da dignidade humana, e por isso
enformando o mínimo vital, o direito à educação tem eficácia imediata e
ambivalente: seja a positiva, de que aqui não se trata, seja a paralisante das
regras que o amesquinhem[7], inclusive de índole tributária.
Donde
a conclusão de CARLOS LEONETTI[8] no sentido
de que as despesas com educação particular são necessárias e involuntárias,
exigindo dedução da base de cálculo do IRPF.
Além
de ofensivo ao conceito de renda (dedução do mínimo vital), à capacidade
contributiva, ao não-confisco, ao direito fundamental à educação e à dignidade
humana, o estabelecimento de limites de dedução irrealistas fere ainda a
razoabilidade, que, como aduz HUMBERTO ÁVILA[9], “exige
a harmonização das normas com as suas condições externas de aplicação”.
Bem
por isso, em decisão pioneira, a Corte Especial do TRF da 3ª Região declarou a
inconstitucionalidade do teto de dedução em foco (Arguição de
Inconstitucionalidade Cível nº 0005067-86.2002.4.03.6100/SP, Rel. Des. Federal
MAIRAM MAIA, DJe 14.05.2012).
Quanto
aos gastos com a instrução de dependentes, malferido está ainda o princípio da
proteção da família (art. 206 e ss.). É que, ao tempo em que impõe limites
simbólicos para a dedução das despesas de educação realizadas no âmbito do lar
comum, a Lei nº 9.250/95 autoriza – com total acerto, aliás – o desconto
ilimitado dos pagamentos de pensão alimentícia (art. 8º, II, f), dentro da qual, a teor do art.
1.694, caput, do Código Civil,
devem figurar as quantias necessárias à educação do alimentando.
Cabe
demonstrar, por fim, os impactos financeiros de decisão do STF que elimine o
teto de dedução dos gastos com educação, de forma a autorizar o seu abatimento
integral (como, aliás, se faz para as despesas médicas).
No
exercício de 2011 (ano-base 2010), o último para o qual tais informações estão
disponíveis[10], 23,96 milhões de contribuintes apresentaram
declaração de IRPF.
Os
rendimentos tributáveis elevaram-se a R$ 946,24 bilhões, e as deduções
realizadas foram de R$ 232,50 bilhões, o que – feitas todas as contas (IR-fonte
+ saldo a pagar – saldo a restituir) – levou a um IRPF total de R$ 81,11
bilhões.
Os
gastos com instrução declarados foram de R$ 31,37 bilhões, mas o teto legal
limitou a dedução a R$ 15,46 bilhões. Houve, assim, R$ 15,91 bilhões em despesas
com educação que não puderam ser abatidas.
Admitindo-se
que todo este valor tenha sido tributado à alíquota máxima de 27,5%, conclui-se
que a redução de arrecadação decorrente da procedência da ADI não superaria
os R$ 4,37 bilhões em 2010 (se o pedido se estendesse a
períodos pretéritos, o que não é o caso), valor parcíssimo ante os investimentos
públicos em educação – da ordem de R$ 213,15 bilhões naquele ano[11] – e da
relevância social da matéria, mas que acarreta ônus elevados para aqueles a quem
o abatimento é negado.
Um
exercício hipotético o comprova. Tome-se um servidor público federal com dois
filhos em uma escola particular cuja anuidade seja de R$ 10.000,00, sem outras
fontes de renda, sem outros dependentes e sem gastos com saúde.
Segue
o cálculo do seu IRPF 2012/2013, com e sem o limite de dedução das despesas com
instrução, caso os seus rendimentos totais no ano tenham sido de R$ 75.000,00[12]:
Situação
1: atendido o teto dos gastos com educação:
● Base de
cálculo: 75.000,00 –
3.949,44 (desconto-padrão com os dois dependentes) – R$ 8.250,00 (contribuições
previdenciárias) – R$ 6.182,30 (teto das despesas de educação) = R$ 56.618,26
● IRPF devido: R$ 56.618,26 x 27,5% – R$ 9.078,38 = R$ 6.491,64
Situação
2: plena dedutibilidade dos gastos com educação:
● Base de cálculo: 75.000,00 – 3.949,44 (desconto-padrão com os
dois dependentes) – R$ 8.250,00 (contribuições previdenciárias) – R$ 20.000,00
(despesas de educação) = R$
42.800,56
● IRPF devido: R$ 42.800,56 x 22,5% – R$ 6.625,79 = R$ 3.004,33
A
diferença é de R$ 3.487,31, ou
aproximadamente 60% de um salário mensal do contribuinte.
Caso
o rendimento anual fosse de R$ 150.000,00, mantidas as demais condições, o IRPF
devido seria de R$
24.847,88 na situação 1 e R$ 21.048,02 na situação 2, uma diferença de R$ 3.799,86, algo em torno de 1/3 de
um salário mensal do contribuinte.
Caso
os filhos fossem três, o IRPF devido seria, ceteris paribus:
●
para o contribuinte com rendimentos totais de R$ 75.000,00: R$ 5.098,52 na situação 1 contra R$ 942,32 na situação 2 (a diferença representa cerca
de 70% de um salário mensal do contribuinte);
●
para o contribuinte com rendimentos totais de R$ 150.000,00: R$ 23.454,77 na situação 1, contraR$
17.754,97 na situação 2 (a
diferença beira os 50% de um salário mensal do contribuinte).
Como
fica claro, as diferenças são sempre expressivas para as faixas de rendimentos
consideradas, e as perdas são maiores para os cidadãos com menores rendimentos
e/ou com maior número de dependentes, precisamente aqueles que revelam menor
capacidade econômica.
Enquanto
isso, o Salgueiro foi autorizado pelo Ministério da Cultura a captar, mediante
incentivos fiscais[13], R$ 4,9 milhões para o seu desfile de 2013[14].
É
assim: escola, no Brasil, para dar direito a dedução integral de imposto de
renda, só mesmo escola de samba.
[1] J.F.
BILHON, De l’Administration des
Revenus Publics Chez les Romains. Paris: Guilleminet, An XI (1803), p.
26-27.
[2]http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/resumos_tecnicos/resumo_tecnico_censo_educacao_basica_2011.pdf,
acesso em 20.03.2013.
[3] Os dados do
ensino superior são de 2003.
ELÓI
MARTINS SENHORAS, KELLY PEREIRA TAKEUCHI, KATIUCHIA PEREIRA TAKEUCHI. A Análise
Estrutural do Ensino Superior Privado sob Perspectiva, p. 03. Disponível emhttp://www.aedb.br/seget/artigos06/418_EnsinoSuperiorPrivado.pdf,
acesso em 17.03.2013.
TRISTAN
McCOWAN. O crescimento da educação
superior privada no Brasil: implicações para as questões de equidade, qualidade
e benefício público. In Archivos Analíticos de Políticas Educativas
vol. 13, nº 27, abril de 2005, p. 03. Disponível em http://epaa.asu.edu/epaa/v13n27/,
acesso em 17.03.2013.
[4] http://sistemasideb.inep.gov.br/resultado/,
acesso em 17.03.2013.
[5] A Relação entre
Mensalidade Escolar e Proficiência no ENEM. Inhttp://www.anpec.org.br/encontro2009/inscricao.on/arquivos/000-c5eb653b0963602b4037e0ae9e07493.pdf , p. 10, acesso em 10.03.2013.
[6] Ver artigos
citados na nota 03.
[7] LUÍS ROBERTO
BARROSO. O Novo Direito
Constitucional Brasileiro: Contribuições para a Construção Teórica e Prática da
Jurisdição Constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 305-315 e
326.
[8] O Imposto
sobre a Renda como Instrumento de Justiça Social no Brasil. Barueri:
Manole, 2003, p. 194.
[9] Teoria dos
Princípios: da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
143-144.
[10]http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/estudoTributarios/estatisticas/GrandesNumerosDIRPF2011.pdf,
acesso em 15.03.2013.
[11] (http://portal.inep.gov.br/c/journal/view_article_content?groupId=10157&articleId=85039&version=1.4,
acesso em 15.03.2013)
[12] O
desconto-padrão por dependente é de R$ 1.974,72 (Lei nº 9.250/95, art. 8º,
II, c, 6).
A
possibilidade de dedução plena dos pagamentos à previdência social oficial está
prevista na alínead do mesmo
dispositivo. Para os servidores federais não incluídos no FUNPRESP, esta
contribuição é de 11% (Lei nº 10.887/2004, art. 4º, I).
A
fórmula para o cálculo do IRPF 2012/2013 é a seguinte:
Tabela Progressiva Anual – IRPF 2013
| ||
Base de cálculo em R$
|
Alíquota%
|
Parcela a deduzir do imposto em R$
|
até 19.645,32
|
-
|
-
|
de 19.645,33 até 29.442,00
|
7,5
|
1.473,40
|
de 29.442,01 até 39.256,56
|
15
|
3.681,55
|
de 39.256,57 até 49.051,80
|
22,5
|
6.625,79
|
acima de 49.051,80
|
27,5
|
9.078,38
|
[13] Dedução – contra o IRPJ devido, desde que não superado o
teto de 4% do imposto – de 30% (patrocínio) ou 40% (doação) dos valores
aplicados no projeto, mais dedução integral dos mesmos valores da base
de cálculo do tributo (RIR/99, art. 475, caput e §§ 1º, 2º e 4º).
Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha
Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito
Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho
Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 3 de
abril de 2013
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