ICMS e ISS: Guerra santa ou guerra suja?
Com a
reforma tributária implantada pela EC 18/65 foi introduzido o ICM no país, cuja
principal característica é a não cumulatividade. Tratava-se de um grande avanço
no caminho de um sistema tributário justo, compatível com os mais modernos do
mundo.
Antes
do ICM tínhamos o IVC (imposto sobre vendas e consignações) , onde não havia
créditos nas entradas. A cada nova operação cobrava-se novo imposto, de tal
maneira que, se o processo de industrialização ou comercialização passasse por
várias fases ou vários contribuintes, a carga final chegava a índices muito
elevados.
No
campo dos impostos municipais, a reforma foi mais sutil. Foi extinto o imposto
sobre indústrias e profissões, que era extremamente confuso, criando-se em seu
lugar o ISS ou ISQN (imposto sobre serviços de qualquer natureza), cujas normas
básicas seriam definidas na lei complementar.
O
sistema antigo do IVC (em cascata) beneficiava apenas as empresas de grande
porte, que tivessem processos produtivos ou comerciais unificados ou
centralizados, onde a mesma pessoa que comprava a matéria prima tinha condições
de colocar o produto final no mercado.
Já
o sistema do ISIP (imposto sobre indústrias e profissões) não tinha quase
nenhuma expressão, pois era pago apenas por pequenas empresas e profissionais
liberais e assim mesmo só nas grandes cidades, pois nas menores não havia
regulamentos sobre isso.
Nessa
reforma, o Imposto sobre Consumo, que era pago pelas indústrias, passou a
denominar-se IPI (imposto sobre produtos industrializados), com alíquotas
seletivas e cobrado sobre as operações de industrialização. Aqui fez-se
verdadeira aberração jurídica, mantendo-se dois impostos sobre valor agregado, o
que tornou a carga tributária repetitiva no primeiro momento e insuportável no
médio prazo. O Brasil, ao que consta, é o único país do mundo que cobra dois
impostos sobre vendas de mercadorias ou produtos industrializados no mercado
interno.
Tudo
isso mantinha o Brasil numa economia amarrada a mecanismos coloniais, com
oportunidade de crescimento apenas para poucas empresas.
Agora
estamos de novo em busca de outra forma de tributação , que nos permita mais uma
fase de crescimento, mas consta que vivemos numa guerra fiscal. Isso seria um
conjunto de medidas adotadas por Estados e Municípios, em defesa das respectivas
economias, mediante concessão de benefícios fiscais.
Essa
tal guerra fiscal tornou-se a bola da vez na imprensa
especializada. Todos a comentam, todos a criticam, todos a odeiam. Vemos, no
meio desse barulho todo, até mesmo comentários de ex-servidores públicos que,
quando ocuparam seus cargos remunerados pelo povo, nada fizeram a respeito do
assunto e em alguns casos até mesmo cuidaram de se promover e faturar à custa de
eventos onde se discutiam teses muito interessantes para não levar a lugar
algum.
A
Guerra do ICMSNo que respeita ao ICMS, uma das propostas pretende
criar três alíquotas diferentes, com base na Resolução 13/2012 do Senado, sendo
uma delas de apenas 4% para produtos importados ou fabricados com produtos
importados. Isso não faz sentido, nem tem como funcionar na prática e vai dar
muita encrenca.
Ora,
o produto importado, quando paga ICMS no desembaraço aduaneiro, gera crédito
para o importador. Esse crédito tem de ser integral, ou seja: pagou 12%,
creditou-se do mesmo valor. Eis aí o princípio da não cumulatividade: todo
pagamento gera crédito. Simples assim. Se vier a pagar 4% para fora do Estado,
estará se apropriando de parte do crédito que pertence ao destinatário.
Obviamente, ninguém importa mercadoria para vender pelo preço que pagou. Sua
carga de ICMS deve ser, pois, sobre o valor agregado, que é a diferença
entre o que pagou na entrada (e creditou) e o que está cobrando do
destinatário.
Deve-se
levar em conta, ainda, que o ICMS é um imposto de repercussão, ou seja,
deve onerar o consumidor final. Portanto, será necessário passar o crédito
integral (não apenas os 4%) ao destinatário, pois este pagará o tributo integral
na sua operação e não pode ser onerado pela carga total, mas apenas pelo imposto
sobre o valor que efetivamente tenha agregado, ou seja, em resumo, a sua margem
bruta de lucro.
ICMS:
A guerra pode ser santaUma das questões que vem sendo levantada de
forma pelo menos equivocada nessa briga dos estados do Sudeste contra os do
Norte ou Nordeste, refere-se à suposta fuga de indústrias ou a
desindustrialização dos primeiros. O governo paulista fala que tem receio de
perder indústrias. Trata-se de uma grande besteira que só pode ter origem na
desinformação de seus assessores ou, então, em interesse de faltar com a verdade
para obter frutos eleitorais.
A
implantação de novas indústrias atualmente não leva em conta apenas as supostas
vantagens tributárias. Questões de logística, facilidade de contratação de mão
de obra, energia mais estável e barata, portos melhores e muitos outros fatores
é que influem na decisão. Tanto assim, que há fábricas que já procuram
instalar-se no sul ou no nordeste, onde tais condições são bem satisfatórias. O
estado de São Paulo já não é apenas industrial. Será que alguém ainda não
percebeu isso?
Por
outro lado, todos sabemos que o ICMS é imposto de repercussão, a ser suportado
pelo consumidor e, em alguns casos, há mecanismos de substituição tributária
capazes de assegurar que o estado produtor não perderá arrecadação podendo, na
pior das hipóteses, aceitar que parte dela vá para o estado que consome a
mercadoria.
A
fábrica virou shoppingSe o estado de São Paulo perder algumas
indústrias, talvez seja bom para sua população. Há vários exemplos disso. Um
deles é uma fábrica de ferramentas que funcionava em Santo André e mudou-se para
Uberaba. Todo mundo ganhou com a mudança. Onde havia uma fábrica antiga e
obsoleta, hoje há um “shopping” com cinco vezes mais empregados, todos ganhando
salários maiores e a região hoje é bem melhor do ponto de vista urbanístico. A
arrecadação cresceu muito nesse município, pois a fábrica que exportava (com
isenção de ICMS) deu lugar a muitos varejistas que pagam o imposto em volume bem
maior.
ICMS:
Benefícios não compensam agiotagemSe a guerra do ICMS não pode
ser santa, também não precisa
ser uma guerra suja. Noticiou-se que o governo federal
estaria disposto a abandonar o projeto de mudança do ICMS diante de pressões do
Congresso no sentido de reduzir os encargos das dívidas dos estados ou mesmo
conceder um desconto de 45% nas dívidas das unidades da federação para com a
União.
Ora,
com 2/3 da arrecadação nas mãos e sentido-se capaz de investir bilhões em
anistias (ou “desonerações” como prefere dizer) onde se vê que o objetivo
principal ou único é garantir um novo mandato presidencial, nada justifica que a
União mantenha estados e municípios (especialmente o de São Paulo, que é seu
aliado) atrelado a cronogramas financeiros apertados e com juros acima do
razoável. Tal situação parece ser agiotagem e, pior inda, com dinheiro
alheio.
Fica
muito bonito invocar a Lei de Responsabilidade Fiscal agora para enquadrar seus
adversários e encostá-los na parede, obrigando-os a aceitar qualquer projeto,
se, nos dez anos anteriores tal lei era ignorada.
Note-se
que o desconto pleiteado pelos governadores na dívida publica (45%) é menor do
que os concedidos por muitos bancos privados a seus clientes em casos de
inadimplência. Ademais, o dinheiro concedido aos estados pertence ao povo, pois
toda a arrecadação vem é daqui mesmo da planície. Hoje, se a maior cidade do
país ainda não tem um metrô completo ou mais avançado, parte disso resulta dos
desvios de recursos, onde o dinheiro de São Paulo financiou aquela aventura das
águas do São Francisco e tantas outras papagaiadas que não cabem nesta
coluna.
ICMS:
A convalidação dos atos jurídicosOs estados que concederam
benefícios fiscais, como Espírito Santo e Santa Catarina, por exemplo,
fizeram-no dentro dos limites de sua autonomia legislativa. Se deram algo, deram
o que lhes pertencia, com aprovação de seu povo, representado nas Assembleias
Legislativas. A Lei Complementar 87/96, (alterada pela LC 114/2002) diz no
artigo 1º:
Art.
1º Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir o imposto sobre operações relativas à
circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as
prestações se iniciem no exterior.
Quando
a LC fala em instituir quer dizer, obviamente, em estabelecer as
regras, o que inclui os benefícios. No estado do Espírito Santo tal benefício
era um sistema de financiamento. Veja-se a síntese do FUNDAP:
“O
FUNDAP é um financiamento para apoio a empresas com Sede no Espírito Santo e que
realizem operações de comércio exterior tributadas com ICMS no Espírito Santo.
As empresas industriais que se utilizam de insumo importado, poderão se
habilitar aos financiamentos FUNDAP , criando uma filial especializada em
comércio exterior. A condição básica para o financiamento FUNDAP é o fato gerador do imposto e a necessidade
do recolhimento. A empresa pode ser
uma Ltda. ou S/A.”
O
estado do Espírito Santo, ao instituir o FUNDAP, agiu dentro do que lhe autoriza
a Constituição Federal. O que fez foi apenas criar um mecanismo de financiamento
para os importadores, não havendo isenção ou renúncia de tributo. Portanto, nada
praticou de ilegal. Vários Estados concedem financiamentos para instalação de
empresas em seu território, sem que isso seja questionado.
Portanto,
quem concedeu incentivos com base em leis aprovadas pelas suas assembléias, deve
tê-los reconhecidos , sendo ainda convalidados os atos jurídicos que são
perfeitos sob o ponto de vista legal.
ISS:
Mudanças absurdas na leiCom relação ao ISS, o projeto de lei do
Senado que está aguardando votação é uma aberração jurídica total. A pretexto de
acabar com a chamada guerra
fiscal, chega a invadir o terreno da Lei de Responsabilidade Fiscal e criar
nova modalidade penal para administradores municipais.
Pretende
o projeto PLS 386/12 ampliar a possibilidade de transferir ao tomador dos
serviços a responsabilidade pelo pagamento do imposto. Isso não resolve
qualquer problema, mas pode criar outro: o tomador não recolhe e o fisco vem
pretender transferir ao prestador o encargo.
Outra
aberração: pretende proibir benefícios tributários ou isenções. Com isso, alguns
municípios poderão criar incentivos ainda mais onerosos, como doação de
terrenos, por exemplo. Parece que todos resolveram ignorar a autonomia dos
entes federativos, que só pode ser limitada pela Constituição.
No
campo da incidência, cria-se a tributação sobre serviços de saneamento. Como o
imposto é de repercussão, poderá ocorrer com o ISS nesse caso o que já acontece
com o ICMS na energia elétrica e nas comunicações: nós, os trouxas, vamos pagar
esse pato também. ISS sobre esgoto! Está bom?
Mais
uma maluquice legislativa é pretender o projeto que se cobre ISS das locações
comerciais de imóveis, contrariando jurisprudência em sentido contrário e
ignorando o código civil Fala-se agora numa tal “locação empresarial de
imóveis”, figura inexistente no Código Civil
Vamos
ver no que vai dar tudo isso. Por via das dúvidas, vou sugerir à CAASP que
amplie o seu convênio com psiquiatras e psicólogos. Todos nós vamos
precisar!
Raul Haidar é jornalista e advogado
tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e
integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 27 de
maio de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário