As denúncias anônimas e as autuações tributárias
Vem se
tornando cada vez mais comum que representantes ou diretores de empresas de
pequeno ou médio porte recebam intimações para comparecer a delegacias da
Polícia Civil ou mesmo da Federal (esta ainda em número pequeno) para prestar
esclarecimentos sobre supostas denúncias de sonegação. Na maioria das vezes
essas intimações trazem também a exigência de apresentação, à Polícia, de
livros, talões de notas fiscais e outros documentos de natureza tributária ou
contábil.
Por
mais séria e organizada que seja uma empresa, tais intimações causam
preocupação, pois não é raro acontecer de fraudes serem praticadas sem o
conhecimento de seus proprietários. Assim, é natural que o responsável (sócio ou
diretor), não sendo familiarizado com as rotinas legais, encarregue seu contador
ou um advogado para acompanhar o assunto e, se for o caso, atender à
intimação.
Todavia,
não é legal qualquer intimação dessa natureza, que alegadamente se ampare em
denúncia anônima. De fato, a intimação é nula, devendo o empresário ou seu
preposto comparecer apenas para deixar claro que não dará informações a que não
está obrigado por força de lei. Convém que o faça acompanhado por advogado, que
registrará por petição o comparecimento e a negativa, para a devida comprovação
do atendimento.
As
polícias – civil ou federal – possuem competência para investigar crimes de
sonegação fiscal, mas isso não lhes permite fiscalizar a escrita fiscal ou
contábil dos contribuintes, o que é de competência exclusiva das autoridades
fazendárias. Tal norma decorre da atenta leitura do inciso II do parágrafo 1º e
do parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição, que cuidam da competência das
polícias.
A
verificação da ocorrência do fato gerador, o exame de consistência da
escrituração contábil e adequação dos respectivos lançamentos e recolhimentos,
para que daí possa resultar lançamento de tributos e eventual exigência de
multas e outros acréscimos, são atos privativos dos auditores da receita ou dos
agentes fiscais de rendas. Assim, qualquer denúncia que chegue ao conhecimento
da autoridade policial, deve ser imediatamente encaminhada à autoridade
fazendária competente.
O
artigo 37 da Constituição ordena que a administração pública obedeça ao
princípio da moralidade que, como é óbvio, não admite denúncia anônima, ausente
que está a possibilidade da apuração de eventual denunciação caluniosa. O mesmo
artigo cogita, ainda, da possibilidade de representação contra o exercício
negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública, o
que se viabiliza com tal tipo de denúncia, pois ela pode ser fabricada por
qualquer um, apenas para gerar prejuízo ao serviço, como se verifica muito nos
casos de denúncias anônimas por telefone.
Outrossim,
o artigo 908 do vigente Regulamento do Imposto de Renda (decreto 3.000 de
26/3/1999) , integrante do Capítulo I do Título III, que trata da fiscalização
do imposto, admite a denuncia por terceiros, desde que observada a norma do seu
parágrafo único, que é muito clara:
“A
denúncia será formulada por escrito e conterá, além da identificação do seu
autor pelo nome, endereço e profissão, a descrição minuciosa do fato e dos
elementos identificadores do responsável por ele, de modo a determinar, com
segurança, a infração e o infrator.”
No estado de São Paulo vigora a Lei Complementar 939, do dia 3 de abril 2003, cujo artigo 19 afirma:
“A Secretaria da Fazenda não emitirá ordem de fiscalização ou outro ato administrativo autorizando quaisquer procedimentos fiscais fundamentados exclusivamente em denúncia anônima quando:
I - não for possível identificar com absoluta segurança o contribuinte supostamente infrator;
II - for genérica ou vaga em relação à infração supostamente cometida;
III - não estiver acompanhada de indícios de autoria e de comprovação da prática da infração;
IV - deixe transparecer objetivo diverso do enunciado, tal como vingança pessoal do denunciante ou tentativa de prejudicar concorrente comercial;
V - referir-se a operação de valor monetário indefinido ou reduzido, assim conceituada aquela que resulte em supressão de imposto de valor estimado inferior a 100 (cem) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo - UFESPs.”
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão do dia 11 de dezembro de 2012 (HC 193.562) decidiu que não basta denúncia anônima para autorizar investigação, sendo necessário fato concreto, onde é verificada a veracidade da conduta narrada na informação. Essa decisão refere-se a caso de tráfico de drogas, mas o princípio é o mesmo.
Não pode o contribuinte ser obrigado a comparecer a uma delegacia de polícia e entregar documentos cujo exame é privativo de agente fiscal, pois assim submete-se a ato ilegal, que é ser coagido a uma autoincriminação perante pessoas que ou não são autoridades ou são autoridades incompetentes para, de forma tecnicamente adequada, apurar a realidade.
No estado de São Paulo vigora a Lei Complementar 939, do dia 3 de abril 2003, cujo artigo 19 afirma:
“A Secretaria da Fazenda não emitirá ordem de fiscalização ou outro ato administrativo autorizando quaisquer procedimentos fiscais fundamentados exclusivamente em denúncia anônima quando:
I - não for possível identificar com absoluta segurança o contribuinte supostamente infrator;
II - for genérica ou vaga em relação à infração supostamente cometida;
III - não estiver acompanhada de indícios de autoria e de comprovação da prática da infração;
IV - deixe transparecer objetivo diverso do enunciado, tal como vingança pessoal do denunciante ou tentativa de prejudicar concorrente comercial;
V - referir-se a operação de valor monetário indefinido ou reduzido, assim conceituada aquela que resulte em supressão de imposto de valor estimado inferior a 100 (cem) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo - UFESPs.”
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão do dia 11 de dezembro de 2012 (HC 193.562) decidiu que não basta denúncia anônima para autorizar investigação, sendo necessário fato concreto, onde é verificada a veracidade da conduta narrada na informação. Essa decisão refere-se a caso de tráfico de drogas, mas o princípio é o mesmo.
Não pode o contribuinte ser obrigado a comparecer a uma delegacia de polícia e entregar documentos cujo exame é privativo de agente fiscal, pois assim submete-se a ato ilegal, que é ser coagido a uma autoincriminação perante pessoas que ou não são autoridades ou são autoridades incompetentes para, de forma tecnicamente adequada, apurar a realidade.
Esse
direito que o contribuinte tem de só entregar seus livros e documentos ao fisco,
é reconhecido judicialmente. Trata-se da garantia constitucional de não ser
obrigada qualquer pessoa a prestar declarações ou informações que representem
auto-incriminação. Decidiu o Supremo Tribunal Federal em várias oportunidades
que: “Nemo tenetur se detegere: direito ao silêncio. Além de não ser
obrigado a prestar esclarecimentos, o paciente possui o direito de não ver
interpretado contra ele o seu silêncio. IV. Ordem concedida, para cassar a
condenação” (STF, HC 84.517/SP, relator ministro Sepúlveda Pertence, julgado em
19.10.2004).
O
Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), no HC 2003.04.01.024851-2 também
decidiu que: “A garantia contra a auto-incriminação prevista no inciso LXIII do
artigo 5º da CF/88 se estende a qualquer indagação por autoridade pública, de
cuja resposta possa advir a imputação da prática de crime pelo declarante.”
No
mesmo sentido é a doutrina corrente. Ada Pellegrini Grinover, citada por Celso
Bastos, emComentários à Constituição Brasileira de 1988 (Saraiva, S.Paulo, 2º volume, pág. 296)
ensina que: “O réu, sujeito da defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer
elementos de prova que o prejudiquem”.
O
Professor Hugo de Brito Machado, em trabalho publicado no Jornal Síntese, também afirma que:
“O contribuinte não tem o dever de prestar informações ao Fisco, que possam
servir como prova do cometimento de crime contra a ordem tributária, ou qualquer
outro. A não ser assim, ter-se-ia violado o princípio da isonomia, posto que aos
autores de quaisquer crimes, por mais hediondos que sejam seus cometimentos,
sempre é assegurado pela Constituição o direito ao silêncio, vale dizer, o
direito de não se auto-incriminarem. O contribuinte não há de ser tratado
diferentemente”.
Celso
Antônio Três, membro do Ministério Público Federal, em trabalho publicado no dia
22 de dezembro de 2005 site juristas.com.br, comentou a questão
de fornecimento de livros e documentos fiscais ao próprio Fisco, concluindo que:
“Esses documentos estão imunes à entrega compulsória, de que resulte
autoincriminação, pelos próprios réus. Na atividade empresarial, existem vários
livros obrigatórios e outros facultativos (livro caixa, livro razão, livro
contas-correntes, livro da produção, livro de entradas, saídas, livro de
estoques etc.). No âmbito fiscal, vários livros são impositivos, vários deles
previstos no Convênio de 15/12/70 do Confaz. Apenas estes, os estritamente
fiscais, estão obrigados à entrega compulsória. Os demais, incluindo os
empresariais, não.”
Miguel
Reale Junior e Heloisa Estellita, em trabalho publicado no jornal Valor Econômico de 15/01/2003 ensinam que: “Embora o Fisco
tenha direito a examinar livros e documentos e a solicitar da empresa as
informações necessárias à regularidade da arrecadação tributária, o
correspondente dever do contribuinte de atender a estas solicitações encontra-se
limitado pelo direito constitucional a não colaborar na produção de provas
contra si mesmo, direito esse que vale em face dos agentes fiscais.”
O
direito à não auto-incriminação deve ser entendido como uma das garantias
individuais que se fundamenta na presunção de inocência. Não cabe ao
contribuinte provar que não sonegou. Cabe exclusivamente ao Fisco a prova de
sonegação ou fraude, que não se presumem. Mas de uma forma ou de outra, jamais
cabe à Polícia apurar supostas denúncias de sonegação, sem que haja lançamento
devidamente constituído, isto é, apurado mediante processo administrativo, não
se lhe permitindo, em hipótese alguma, basear-se em denúncia anônima.
Como
é público e notório, quaisquer empresas e mais ainda as de pequeno e médio
porte, são presas fáceis de golpes aplicados por facínoras. A imaginação e o
poder dos criminosos tem desafiado a eficiência do aparato policial no mundo
todo. Tanto assim, que já ocorreram casos de automóveis comuns se transformarem
em viaturas clonadas e policiais verdadeiros serem confundidos com os
falsos.
Para
prevenir-se diante desses crimes, o empresário deve adotar certas regras
básicas. A primeira delas é não compactuar com atos ilícitos. Sempre que alguém,
pretendendo auferir vantagem, aceita que um crime seja praticado, acaba num
primeiro momento se tornando cúmplice dos meliantes e sujeito às mesmas penas em
caso de condenação e, num segundo momento, transforma-se de maneira bem pior em
refém das verdadeiras quadrilhas que se multiplicam por aí.
Não
faz muito tempo uma empresa metalúrgica de médio porte recebeu pelo correio um
envelope contendo suposta intimação da Policia Federal e foi informada por um
profissional que lá esteve para ver do que se travava que contra a empresa seria
lavrado grande autuação, o que ensejaria um trabalho destinado a tentar reverter
o caso, com a interferência até de um político.
O
empresário procurou um advogado e a fantasia se desfez rapidamente, ficando
comprovado que a intimação era falsa e tudo não passava de uma tentativa de
golpe praticada de forma simplória por uma pessoa capaz de imaginar que qualquer
empresário é idiota. A intimação falsa foi formal e legalmente entregue à
Policia para a adoção das providências cabíveis contra o espertinho mal
sucedido.
Em
outro caso, numa delegacia da polícia civil, foi intimado um empresário, eis que
um policial afirmou que teria recebido na delegacia pessoa que se recusou a
identificar-se, mas que fez denúncia alegando que a empresa estava vendendo sem
emissão de notas. O policial fez questão de intimar o acusado, apenas com base
em alegação vaga de pessoa que não se identificou, em ato evidentemente ilegal,
diante do que o advogado do empresário compareceu e fez ver à autoridade que a
intimação não se sustentava. Com isso, perde a polícia tempo precioso para
investigar casos concretos e até pode prestigiar pessoas de má índole
interessadas em prejudicar o serviço público e a credibilidade das
instituições.
Infelizmente
esses casos não são muito raros. Mas quem ainda acredita na possibilidade de
sumir com processos, quebrar galhos em delegacias, não pagar impostos mediante
mágicas e outras autênticas pajelanças fantasiosas, que trate de rever seus
conceitos.
Praticamente
não existe mais sigilo em quase nada que se refira ao mundo tributário. As
informações são hoje transmitidas em tempo real I(ou on line, como preferem
alguns) e os cruzamentos de informações são presentes em quase tudo. Portanto,
qualquer empresa, por menor que seja, terá que ser super organizada e possuir
assessoria contábil de bom nível e, quando necessário, de uma advocacia
especializada que seja reconhecidamente apta a cuidar dessas questões.
Note-se
que todo o aparato tecnológico que cuida dos controles da tributação possibilita
gerar erros diversos, seja por falhas humanas decorrentes do excesso de
informações que são processadas, seja pelas deficiências técnicas dos
equipamentos ou das falhas resultantes de eventuais terceirizações na execução
do trabalho ou mesmo pela instabilidade ou insegurança dos sistemas de
processamento de dados ou de transmissão dos dados, que podem afetar-lhes a
segurança.
Além
disso, a fantástica produção de novas regras legais e administrativas acaba
gerando dúvidas ou erros de interpretação que resultam em autos de infração,
onde muitas vezes são exigidos altos valores de tributos que não são devidos ou
multas absurdamente elevadas, com o que o trabalho dos especialistas não se
reduz.
Aquela
história de contratar um contador porque ele é amigo do fiscal ficou perdida no
século passado. E aquela outra, do servidor publico que se aposentou como
ministro ou diretor de repartição e agora virou consultor, também não adianta.
Na maior parte dos casos os chefes de repartição ou ministros eram odiados pelos
seus colegas de trabalho e não estão habituados a trabalhar seriamente na defesa
dos contribuintes. O máximo que fazem é terceirizar o serviço ao recém formado,
que ainda não teve tempo de aprender o necessário. Não se brinca com autuações
tributárias.
Raul Haidar é jornalista e advogado
tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e
integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 6 de
maio de 2013
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