O preço do serviço como base de cálculo do ICMS
O título, infelizmente, não é vistoso. Ao contrário. Numa primeira leitura, parece tratar de algo vetusto e ultrapassado. Mas, o fato é que, nesta quarta-feira (8/5), a 1ª Seção do STJ se debruçou exatamente sobre esse assunto quando julgou o EREsp 1.190.858/BA, opostos pelo estado da Bahia contra a uma concessionária de serviços de telecomunicações.
Mas não é só. Na decisão, o tribunal acabou sendo levado a decidir de forma totalmente contrária à sua própria jurisprudência, inaugurando uma novel e perigosa sistemática de incidência do ICMS sobre a prestação de serviços e operação de circulação de mercadorias.
Explica-se. Não é novo o entendimento, já absolutamente pacificado, de que o ICMS tem como base de cálculo o valor da operação ou o preço do serviço. A exegese é facilmente depreendida do artigo 13, incisos I e III, da Lei Complementar 87/1996.
Assim, tratando-se de prestação do serviço, para reduzir o escopo da análise e aproximá-la da decisão tomada pelo STJ, a base de cálculo é o preço do serviço. Resta óbvio que essa materialidade é simplesmente o valor apurável do negócio jurídico efetivamente realizado, refletido na documentação comercial suporte. Há dúvidas disso? Se uma operadora de telecomunicações cobra do seu usuário R$ 100 por um serviço de comunicação, parece de clareza meridiana que a materialidade sobre a qual incidirá o ICMS é essa, ou seja, R$ 100[1].
Em outras palavras, a Lei Kandir estabelece uma espécie de presunção absoluta de que, sobre o preço do serviço cobrado, está embutido o ICMS. Qual a consequência disso? A consequência é a atribuição ao contribuinte de toda a responsabilidade e risco sobre essa obrigação de embutir o imposto no preço do serviço ou no valor da operação. Se deixou de repassar o ônus econômico do imposto ao usuário, assumirá ele, cortando a sua própria margem de lucro, o referido encargo.
Agora, veja a regra do parágrafo 1º, inciso I, do artigo 13 da mesma Lei Kandir. Ela afirma que o montante do próprio imposto integra a sua base de cálculo. Alguma novidade aqui? Também não. Apesar de toda a crítica que se faz à possibilidade de que lei infraconstitucional inclua na base de tributo sobre circulação de mercadoria e prestação de serviço materialidade que não seja mercadoria ou serviço, o certo é que essa inclusão do ICMS na base de cálculo é, hoje, inafastável, por conta de iterativa e pacificada jurisprudência dos tribunais pátrios, em especial do STF[2].
Pelo exposto, não se pode perder de vista que a controvérsia nada tem que ver com regra de que o ICMS compõe a sua própria base. O que se está discutindo é a possibilidade de o estado contestar o valor efetivamente cobrado por um negócio jurídico legítimo, arbitrando o valor pelo qual o mesmo poderia ter sido celebrado.
De novo. Se um contribuinte cobra R$ 100, para usar o exemplo acima, do seu cliente, não resta dúvida que esse é o preço do serviço. A primeira pergunta que se pode fazer aqui é: o contribuinte poderia cobrar esse preço do seu cliente? Se a resposta for afirmativa, naquele valor se presume embutido o ICMS. E se o contribuinte errou e não o embutiu? Arca ele com o ônus do imposto, sem possibilidade de repercussão.
No caso específico julgado pelo STJ, aqui comentado, então, o único questionamento que o estado poderia fazer era se a concessionária de serviços cobrou valor legítimo dos seus usuários. A resposta, no caso, é claramente afirmativa, pois, pelos contratos de concessão, a União estabelece preços máximos para a prestação do serviço de telecomunicações. Até esse teto, a concessionária é livre para estabelecer seu preço.
Qual o ponto da discórdia, então? O ponto é que o estado da Bahia — aliás, o único que assim entende — defende que a concessionária deveria ter feito incidir o ICMS não sobre o preço do serviço cobrado e recebido de seu usuário (R$ 100), mas sim sobre o valor correspondente ao preço do serviço somado ao valor do ICMS (R$ 100 + 25%[3] = R$ 133,33). Só depois dessa soma, portanto, é que faria incidir o imposto (novamente!) para chegar ao valor a ser recolhido pela concessionária (R$ 133,33 x 25% = R$ 33,33 de ICMS). Inédito, para se dizer o mínimo.
O estado da Bahia pretende, apenas para repisar, em face da criatividade e ineditismo da ideia, “arbitrar” a base de cálculo do imposto, sendo que essa está absoluta e já definitivamente consolidada nos documentos comerciais e fiscais que embasaram a realização de negócio jurídico legitimamente firmado entre a concessionária e os seus usuários.
Em outras palavras e pedindo vênias pela repetição, o estado da Bahia pretende afirmar que a base de cálculo do serviço não foi a praticada efetivamente pelo contribuinte, mas a que deveria ter sido praticada se ele, desde o início, tivesse embutido o preço do ICMS no valor cobrado.
E o contribuinte? Teria ele se locupletado? Obviamente, não. É que, como o custo do tributo não repercutiu economicamente para o usuário final, ele assumiu o risco ao não recolhê-lo e, consequentemente, o encargo de ter de pagá-lo a posteriori, arcando, sozinho, com todo o ônus do tributo.
Nesse diapasão, foram cirúrgicos os votos dos ministros Herman Benjamim e Castro Meira, no REsp 1.281.838/BA, que teve decisão unânime proferida em 2010 sobre o mesmo tema e com as mesmas partes, pela Egrégia 2ª Turma do STJ.
Disse o ministro Herman:
“Se a concessionária cobrou menos do que poderia, o resultado é que, possivelmente, perdeu a oportunidade de repassar ao consumidor o ônus econômico do tributo, mas não que deva recolher mais ao Fisco do que o resultado da aplicação da alíquota legal sobre o valor da operação.”
O ministro Castro Meira, por sua vez, ensinou:
“Diz-se, nesse caso, que o ICMS é calculado ‘por dentro’ porque incide sobre o valor do serviço já acrescido pela estimativa de imposto elaborada pela própria concessionária e repassada a seus clientes. Como bem concluiu o aresto embargado, se a concessionária cobrou menos do que poderia, possivelmente terá perdido a oportunidade de repassar ao consumidor o ônus financeiro do tributo, mas não que deva recolher mais ao Fisco do que o resultado da aplicação da alíquota legal sobre o valor da operação.”
Como bem pontificou o ministro Castro Meira, deve-se entender que no preço do serviço já estava embutido o ICMS e, por isso, o decote do mesmo deve ser feito aplicando-se a alíquota estadual do imposto sobre esse preço. Assim, como, no caso dos autos, a concessionária perdeu a oportunidade de repassar o ônus do tributo ao usuário, terá que retirá-lo da receita que auferiu. Dos R$ 100 recebidos, entregará R$ 25 ao Fisco baiano, ficando com R$ 75.
Mas, se ele tivesse cobrado R$ 133,33 do seu cliente, o Fisco teria recebido R$ 33,33. É verdade, mas o contribuinte também ficaria com um valor líquido de R$ 100 e não com os R$ 75 do exemplo acima. Ou seja, poder-se-ia elencar diversos exemplos numéricos para mostrar o absurdo do argumento fazendário. É óbvio que se o contribuinte cobra mais do seu cliente, o estado recebe mais de imposto e o contribuinte tem lucro maior! Essa afirmação é de uma obviedade sem tamanho.
Por outro lado, se um restaurante se equivoca e cobra R$ 10 por uma garrafa de vinho que custa R$ 100 na carta, o Fisco poderia autuar o estabelecimento para lhe exigir a diferença do imposto? A resposta só pode ser negativa. Não apenas o Fisco, no caso, receberá menos, como o contribuinte arcará com o prejuízo econômico oriundo do negócio.
Concluindo, o STJ, por sua 1ª Seção, acabou sendo levado a entender tratar-se da regra de inclusão do ICMS na sua própria base, quando nada disso estava ali sendo discutido. E o pior. Seguindo esse entendimento, acabou contrariando a sua própria jurisprudência que define o que é o preço do serviço ou o valor da operação, como base do ICMS, permitindo uma interferência absolutamente indevida do Estado na liberdade de contratar dos particulares.
Aliás, nesse sentido, ao rejeitar os Embargos de Divergência opostos pela Fazenda baiana afirmou, com acerto, o ministro Francisco Falcão, em decisão posteriormente retratada por seu substituto, ministro Ari Pargendler: “O acórdão embargado discutiu questão peculiar, isto é, a tributação mediante utilização de base de cálculo ficta (o contribuinte não repassou ao consumidor o valor do ICMS e o Fisco, mesmo assim, pretende fazer incidir a exação sobre valor superior, isto é, o montante da operação, acrescido do ICMS que deveria ter sido embutido no negócio jurídico)”.
O excerto fala por si e resume o que até aqui se pretendeu dizer.
[1] O Ministro Luiz Fux, no REsp 923.012/MG, julgado em regime de Recurso Repetitivo na 1ª Seção do STJ, enquanto membro daquele Pretório, já afirmava que “a base de cálculo possível do ICMS nas operações mercantis, à luz do texto constitucional, é o valor da operação mercantil efetivamente realizada, ou, consoante o art. 13, inciso I da Lei Complementar n. 87/96, ’o valor de que decorrer a saída da mercadoria’”.
[2] Trecho do voto do relator, ministro Nelson Jobim, do Acórdão do RE 212.209/RS que fixou jurisprudência sobre o significado do “cálculo por dentro” do ICMS: “O Senhor Ministro Nelson Jobim: Vejamos a seguinte hipótese, meramente matemática: admitindo que num produto no valor de cem reais, vendido da empresa ‘A’ para a empresa ‘B’, sobre ela incidisse uma alíquota de 18%, que é mais ou menos a praticada, teríamos 18 de imposto. Quanto a empresa adquirente paga? Cem ou cento e dezoito reais? Se ele adquire por cento e dezoito, a operação que ele praticou foi de cento e dezoito. (...) No momento em que V. Exa. [refere-se ao Min. Marco Aurélio] diz que o tributo depende da vantagem atribuída ao contribuinte, não é sobre a vantagem, é sobre um dado objeto, chamado operação.”
A decisão foi confirmada em diversos julgados posteriores (AGRG no RE 236.409-0/SP, RE 209.393/SP, RE 254.202-4/SP).
[3] Alíquota exemplificativa.
Antônio Reinaldo Rabelo Filho é advogado, diretor da Associação Brasileiro de Estudos Tributários em Telecomunicações (Abetel) e da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF). Mestre em Direito Tributário PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 13 de maio de 2013
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