Multas injustas prejudicam o país e podem ser anuladas
Nas
recentes manifestações do povo brasileiro multiplicaram-se as bandeiras e placas
levantadas para amparar sua voz. No meio de uma multidão no Rio de Janeiro vi
uma placa, aliás mal feita, onde se lia: JUSTIÇA TRIBUTÁRIA! Pelo jeito, a
coluna já tem pelo menos um seguidor. Nada mau para dois anos!
Essa
luta por um sistema tributário justo talvez ainda se perca no meio de tantas
prioridades — saúde, educação transportes, segurança, etc — mas deve ser
considerada em um contexto maior. Afinal, sem dinheiro não se faz nada e isso
vem da arrecadação.
Pois
aí é que o bicho pega. Já existem manifestações aqui e ali no sentido de que é
necessário combater a sonegação. Sem dúvida que é isso mesmo. Trata-se de crime,
há de ser combatido e os responsáveis devidamente punidos na forma da lei.
Mas
temos visto, neste quase meio século de experiência no setor, que são muito
recorrentes os casos de lançamentos injustos e ilegais que, em lugar de provocar
arrecadação dos tributos apontados como não recolhidos, causam sérios prejuízos
aos contribuintes e principalmente ao fisco, vale dizer, ao país.
A
Constituição Federal, no seu artigo 37 , ordena que a administração pública
obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade
e eficiência. Todavia, esses princípios são costumeiramente ignorados nos
lançamentos de ofício, quando se pretende cobrar tributo presumidamente não
pago.
No
estado
O exemplo mais recente disso, no caso falta dos princípios da legalidade e eficiência, está na emissão de milhares de comunicações de lançamento do IPVA a contribuintes que possuam veículos licenciados em outras unidades da federação e apresentem declaração do imposto de renda neste estado.
O exemplo mais recente disso, no caso falta dos princípios da legalidade e eficiência, está na emissão de milhares de comunicações de lançamento do IPVA a contribuintes que possuam veículos licenciados em outras unidades da federação e apresentem declaração do imposto de renda neste estado.
Pretende
a fazenda paulista que a lei estadual 13.296/2008 possa regular o conceito de
domicílio a quem tenha várias residências, com base em diversas hipóteses de
fixação desse domicílio, a critério do fisco.
Ora,
as normas que disponham sobre conflitos de competência em matéria tributária são
reguladas por lei complementar de caráter nacional, nos termos do artigo 146 da
CF. Não cabe à lei estadual, mas sim ao CTN, resolver tais dúvidas.
O
domicílio do contribuinte, pessoa física ou natural, é definido pelo artigo 127
do CTN, cujo parágrafo 1º diz que deve ser considerado domicílio o lugar da
situação dos bens ou da ocorrência dos fatos, quando houver certos eventos como,
por exemplo, pessoa que mantém propriedade rural em outro estado, onde se
localizem veículos somente lá utilizados.
Ao
pretender legislar por lei ordinária do estado questão que cabe à lei
complementar nacional, o estado de São Paulo ignora a CF e traz a lume lei
inaplicável.
Mas
os milhares de contribuintes que receberam os lançamentos vão ter que se
defender do lançamento incorreto, administrativa ou judicialmente.
O
pior de tudo é que a notificação já diz que o suposto devedor estará no Cadin
estadual se não fizer o pagamento. Com isso, não vai receber essas migalhas
ridículas que o Estado diz devolver aos contribuintes que perdem seu tempo
informando o numero do CPF nas notas fiscais que recebem.
Essa
sanha arrecadatória que toma conta de todos os entes federativos tende a se
agravar nos próximos anos. Afinal, há muitas obras a construir e muito a fazer
para atender as exigências do povo que, ao que parece, já não se compraz apenas
com pão e circo ou com os badulaques que comprou a prazo porque o IPI foi
reduzido.
Para
prestar contas à nação e justificar eventual problema financeiro, o governo pode
tentar fazer o que melhor sabe: nos enganar. Para tanto, dirá que o problema
resulta do fato de que muitos estão sonegando. Precisarão combater a sonegação e
prender os sonegadores. Beleza! Precisamos mesmo. Mas tem um porém: não vão
começar pelos que praticaram os atos de corrupção no setor público e,
obviamente, não pagaram os impostos? Afinal, como disse o Barão de Itararé: “Ou
nos locupletemos todos, ou restaure-se a moralidade!”
O
combate à sonegação não pode justificar a inobservância dos direitos
constitucionais que nos são assegurados. Não se pode, por exemplo, obrigar o
contribuinte à auto-incriminação, assunto sobre o qual já escrevemos aqui em
6/5/2013 – clique aqui para
ler.
Há
diversas decisões judiciais que asseguram o direito do contribuinte não prestar
informações quando entender que isso possa prejudicá-lo. Naquela oportunidade
citamos duas, a saber:
“Nemo tenetur se detegere: direito ao silêncio. Além de não ser obrigado a prestar esclarecimentos, o paciente possui o direito de não ver interpretado contra ele o seu silêncio. IV. Ordem concedida, para cassar a condenação” (STF, HC n. 84.517/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 19.10.2004).
“A garantia contra a auto-incriminação prevista no inciso LXIII do artigo 5º da CF/88 se estende a qualquer indagação por autoridade pública, de cuja resposta possa advir a imputação da prática de crime pelo declarante. (TRF-4 = HC 2003.04.01.024851-2)
O
contribuinte tem o direito de ser considerado inocente até prova em contrário e
contra ele não são válidos lançamentos por presunção. A prova há de ser
produzida pelo fisco.
Esses
lançamentos injustos e ilegais poderiam ser resolvidos rapidamente, sem grandes
problemas para o contribuinte ou para o fisco, caso funcionassem a contento os
órgãos de julgamento administrativo.
No
município de São Paulo existe o CMT — Conselho Municipal de Tributos. A nível
estadual temos o TIT — Tribunal de Impostos e Taxas — e no federal o Carf —
onselho Administrativo de Recursos Fiscais como órgão de segunda instância e as
Delegacias de Julgamento na primeira.
Lamentavelmente,
nem todos funcionam bem, havendo uma tendência à parcialidade em favor do fisco.
Nos órgãos colegiados (segunda instância) há representantes dos contribuintes,
que são advogados.
Uma
recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo coloca em xeque a
participação de advogados nesses órgãos, caso eles estejam no efetivo exercício
da profissão, entendendo que o julgamento é nulo. Veja-se a ementa do
acórdão:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO — EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE — Auto de Infração e imposição de multa — Processo administrativo que deu origem à execução fiscal — Alegação de nulidade — Integrante do Tribunal de Impostos e Taxas que, à época do julgamento, estava inscrito na OAB, com autorização para advogar. — Incompatibilidade prevista no art. 28, inciso II da Lei 8.906/94 — ecedentes.”
(AI-0196471-72.2012.8.26.0000 = 16/4/2013)
A
prevalecer tal entendimento, o funcionamento do TIT poderá ser muito
prejudicado. Tal órgão julgador, aliás, precisa ser completamente reformulado.
Primeiro, adotando o mecanismo de turmas com numero ímpar de componentes (pelo
menos 5), acabando com o chamado “voto de qualidade” que já tem dado margem a
vários questionamentos, eis que rompe com o equilíbrio que qualquer órgão
julgador deve ter. Finalmente, parece-nos que sua denominação também deveria ser
alterada para Conselho Estadual de Julgamento Tributário, eliminando-se o uso da
expressão “tribunal”, evitando-se assim que o órgão administrativo seja
confundido com parte do judiciário e que seus membros se auto-intitulem
juízes.
No
que tange à participação de advogados no TIT, parece-nos que isso seja
essencial. Assim, entendendo-se que deva prevalecer a decisão do TJ, cujo
fundamento legal e lógico é bastante aceitável, tais advogados devem
licenciar-se da OAB ante a incompatibilidade. Constando que a remuneração que o
TIT lhes paga é simbólica, deveria ser complementada pelas entidades que
representam e cujos direitos ou interesses defendam.
Combater
a sonegação é uma necessidade nacional. Mas também devemos exigir que as
diversas leis que imponham obrigações à sociedade sejam cumpridas e quando o for
o caso, aplicadas as sanções cabíveis.
Mas
esse mecanismo de punições deve ser muito parcimonioso, sem permitir abusos ou
exageros. Quando se dá ao servidor público a possibilidade de aplicar penas
exageradas, ainda que previstas em lei, abre-se a porta para a corrupção.
Devemos criar mecanismos mais eficazes de fiscalização, para evitarmos viver
numa sociedade que se fundamente num terrorismo tributário ou fiscalista, onde
as multas possam acabar com o patrimônio das pessoas.
No
município
O Município de São Paulo, com base na famigerada lei da “cidade limpa”, chegou a aplicar em menos de 3 meses multas num total de mais de R$ 300 mil contra o proprietário de um terreno que estava locado a uma borracharia que se mudou do local, lá deixando uma pequena torre de metal onde havia uma placa.
O Município de São Paulo, com base na famigerada lei da “cidade limpa”, chegou a aplicar em menos de 3 meses multas num total de mais de R$ 300 mil contra o proprietário de um terreno que estava locado a uma borracharia que se mudou do local, lá deixando uma pequena torre de metal onde havia uma placa.
O
proprietário do imóvel, cujo valor venal é menor que a multa, só ficou sabendo
da penalidade quando resolveu tentar vendê-lo. Foi obrigado a depositar o valor
em juízo e está embargando a execução. Registre-se, por oportuno, que a tal lei
é totalmente inconstitucional, pois a CF não permite que o município proíba
publicidade, matéria regulada por lei federal.
Essa
tal “lei da cidade limpa” (lei municipal 14.223 de 26/10/2006) é
inconstitucional. Invoca o município suposta competência, contida no inciso I do
artigo 30 da Constituição Federal, ou seja, “legislar sobre assuntos de
interesse local”. Tal princípio, porém, não pode ser usado para impedir o livre
exercício de atividade regulada por lei federal (publicidade) violando ainda o
princípio da proporcionalidade, bem como o direito à informação.
Em
sentença de 11 de julho de 2012, o Juiz de Direito da 10ª Vara da Fazenda
Pública da Capital, Dr. Valentino Aparecido de Andrade, no processo
0100869-31.2008.8.26.0053, reconheceu essa inconstitucionalidade e declarou a
nulidade do respectivo auto de infração.
No
âmbito federalAs chamadas agências reguladoras criadas pela União,
como a Anatel, Aneel, Ancine , ANP, etc já lançaram quantidades enormes de
multas injustas e muito discutíveis. Muitas vítimas dessas multas injustas são
postos de abastecimento de combustível acusados de comercializar produtos
adulterados, que na verdade foram recebidos de distribuidoras credenciadas,
autorizadas pelo governo.
Não
tinham tais postos como analisar os combustíveis à época do recebimento e as
provas da suposta alteração são precárias. Tais multas em muitos casos
ultrapassam R$ 10 mil cada uma e são aplicadas mais de uma vez. A atividade
varejista de combustíveis não proporciona margem de lucro que suporte tais
sanções. Isso não é penalidade pecuniária, mas é pena de morte econômica! Foge,
assim, aos princípios do artigo 37 da CF.
Conclusão
Já repetimos muitas vezes, mas nunca é demais lembrar para quê temos uma Constituição, como se vê no seu preâmbulo:
Já repetimos muitas vezes, mas nunca é demais lembrar para quê temos uma Constituição, como se vê no seu preâmbulo:
“...para
instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias...”
(01.07.2013)
(01.07.2013)
Raul
Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de
Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da
revista ConJur.
Revista Consultor
Jurídico, 1º de julho de 2013
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