Créditos financeiros devem ser mantidos na exportação
Recentemente, o Portal de Notícias do STF informou que o Plenário do Tribunal reconheceu a existência de repercussão geral relativamente à possibilidade de, nas operações de exportação, aproveitar-se o contribuinte de créditos financeiros de ICMS, como os decorrentes da aquisição de bens destinados ao ativo fixo de empresa ou a uso e consumo[1].
A importância de temas como esse, que abordam a redução de custos na exportação, ganha ainda mais relevância em face das recentes notícias veiculadas pela imprensa no sentido de que o superávit comercial caiu 34% no ano passado. Em 2012, o Brasil não atingiu a meta de exportações. E isso ocorreu pela primeira vez, desde 2003, quando esse registro foi criado. Apesar de elas terem crescido significativamente entre 2000 e 2010 (262%), os números ainda estão bem abaixo dos apresentados pelos BRICs (média de 439%), o que nos coloca em posição desvantajosa perante os nossos parceiros no mercado internacional.
Quanto ao custo médio das vendas ao exterior, estudo elaborado pelo Banco Mundial demonstra que ele aumentou quatro vezes de 2006 a 2011 (de US$ 500 para US$ 2 mil). Embora a taxa de câmbio e outros fatores econômicos sejam apontados como causas do cenário acima, o principal elemento é o alto custo logístico e de produção, o que inclui efeitos tributários como os ora analisados.
Mas, em que consiste a questão objeto deste estudo?
Convencionou-se na doutrina e na jurisprudência classificar os créditos relativos aos impostos plurifásicos não cumulativos em físicos e financeiros.
Créditos físicos seriam aqueles referentes à aquisição de bens efetivamente utilizados e diretamente relacionados à comercialização ou à industrialização das mercadorias objeto das saídas físicas promovidas pelo contribuinte adquirente. Seriam, portanto, créditos relacionados às próprias mercadorias destinadas à revenda, como também aos insumos, matérias-primas e produtos intermediários consumidos no processo de industrialização.
Créditos financeiros, os relativos ao imposto pago na aquisição de bens que, apesar de não integrados fisicamente aos que fossem objeto de saídas tributadas promovidas pelo contribuinte adquirente, tivessem sido adquiridos para integrar o ativo permanente, ou destinados a seu uso e consumo.
Sempre que me deparo com discussões relativas à amplitude e à abrangência do princípio constitucional da não cumulatividade, lembro-me do nosso saudoso professor Geraldo Ataliba, no início dos anos 1990, fazendo as seguintes reflexões enquanto tomava uma xícara de café com gelo (sim, isso mesmo!), ao final de um almoço no nosso escritório: “na forma em que concebido, o princípio da não cumulatividade deve possibilitar a tomada dos créditos relativos a todas e quaisquer aquisições feitas pelo contribuinte que tenham sido oneradas pelo respectivo tributo; se essa mesa, essa cadeira, essa xícara e o café que está nela — dizia ele, apontando para os objetos que o cercavam — forem adquiridos por um estabelecimento industrial ou comerciante, ele terá direito de se creditar do imposto (IPI ou ICMS) que tenha incidido na aquisição; somente assim restará atendida a não-cumulatividade na sua real extensão.”
Ou seja, para o professor Geraldo Ataliba, e essa é também a minha opinião, independentemente da natureza do crédito, se físico ou financeiro, o contribuinte, em respeito ao princípio constitucional da não cumulatividade, teria o direito de tomá-lo e utilizá-lo sempre que fizesse aquisições tributadas. De fato, o que fundamenta o princípio da não cumulatividade é o propósito de evitar a tributação em cascata, bem como a transformação do imposto pago nas aquisições feitas pelo contribuinte em custo que venha a onerar as operações comerciais por ele realizadas. Sem que se permita o creditamento dos impostos anteriormente incidentes de forma ampla e irrestrita, essa finalidade não será alcançada.
Mas, esse não foi o entendimento que prevaleceu na jurisprudência até agora majoritária, no que diz respeito à aplicação das regras de não-cumulatividade. Conforme bem demonstra André Mendes Moreira, em sua obra A Não Cumulatividade dos Tributos, somente o crédito físico, e não o financeiro, tem sido considerado pelos tribunais como o minimum minimorum conferido pela Constituição às regras decorrentes da aplicação do princípio da não cumulatividade. Destaco da sua obra o seguinte trecho:
“Desde os primórdios da implantação da não-cumulatividade, o STF tem assegurado tão-somente o direito ao crédito físico. O crédito financeiro é tido como uma opção conferida ao legislador — sem consistir, todavia, em direito subjetivo do contribuinte.” (...)
No que tange ao IPI, essa opção conferida ao legislador (de atribuir ao contribuinte o direito de utilizar de créditos financeiros) ainda não foi exercida. Pela legislação em vigor, a aquisição de bens do ativo permanente e destinados a uso e consumo não confere ao adquirente o direito de se creditar do IPI nela incidente.
O mesmo não ocorre com o ICMS. Em 1996, com o advento da Lei Kandir (Lei Complementar 87/1996), permitiu-se o aproveitamento do ICMS incidente na aquisição de bens destinados a integrar o ativo permanente, inicialmente de forma ampla, e, posteriormente, com as restrições promovidas pela LC 102/2000 (fracionamento do crédito à razão de 1/48 por mês). Permitiram-se os créditos relativos aos bens de uso e consumo, mas somente a partir de data que vem sendo reiteradamente postergada desde a edição da referida lei (até o momento, houve seis postergações, sendo a última para 1º de janeiro 2020). E, também, créditos relativos à aquisição de energia elétrica e ao recebimento de serviços de comunicação.
Mas, são cabíveis tais restrições na hipótese em que o contribuinte exerça atividades de exportação?
Com o objetivo de evitar a “exportação de tributos”, de que decorre o acentuado aumento do custo Brasil, a legislação que rege a cobrança do IPI, ICMS, ISS, PIS, Cofins, entre outros, determina que eles não incidam sobre a exportação de bens e serviços ao exterior.
No caso do ICMS, a própria Constituição Federal, copiando a anterior, já trazia no seu texto original (artigo 155, inciso X) regra no sentido de que esse imposto não poderia onerar operações que destinassem produtos industrializados ao exterior (excluídos os semi-elaborados definidos em lei complementar).
Posteriormente, com o advento da Emenda Constitucional 42, de 19 de dezembro de 2003, essa restrição foi extremamente ampliada, e essa exclusão de incidência passou a abranger não só produtos industrializados, mas todas e quaisquer mercadorias exportadas (inclusive produtos primários) e serviços prestados a destinatários no exterior, tendo sido expressamente "assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores".
Essa regra (bem mais ampla) objetiva que não só as exportações de mercadorias e serviços de forma irrestrita sejam em si desoneradas, mas também que as operações internas que lhes antecedem (relativas às aquisições de bens ou serviços) não venham de alguma forma a onerar os negócios feitos com o exterior. Essa foi indiscutivelmente a intenção do legislador constitucional ao assegurar “a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”.
Em outras palavras, apesar de a CF determinar a não apropriação ou o estorno dos créditos nas operações que sejam objeto de isenção ou não incidência, o que, em tese, poderia fundamentar o cancelamento dos créditos na exportação, ela própria cria regra específica e igualmente mandatória no sentido de que É DIREITO DO CONTRIBUINTE A MANUTENÇÃO E O APROVEITAMENTO DOS CRÉDITOS NESSAS CIRCUNSTÂNCIAS.
Essa garantia objetiva resultado maior do que o de simplesmente evitar a tributação em cascata (de que decorre a aplicação do princípio da não cumulatividade). Ela visa propiciar à nação brasileira condições apropriadas a que sejam reduzidos ao máximo os custos que possam influenciar negativamente o objetivo comum e fundamental de que o Brasil se posicione como relevante playerno mercado internacional.
Daí a especificidade do tratamento dado aos créditos de exportação, e também daí a necessidade de que a essa regra seja dada interpretação bem menos restrita do que a que vem prevalecendo na jurisprudência relativamente aos créditos financeiros nas operações internas, no sentido de que eles somente são direito do contribuinte nas hipóteses e circunstâncias expressamente previstas na legislação infraconstitucional.
De fato, pela importância, amplitude e absoluta relevância do bem que essa regra visa proteger, o seu minimum minimorum, diferentemente do que prevaleceu em relação à aplicação ordinária das regras de não-cumulatividade nas operações realizadas no mercado interno, deve ser entendido como também abrangente dos créditos financeiros, e não somente dos créditos físicos.
Disso resulta serem inaplicáveis as restrições previstas da LC 87/1996 acima comentadas às operações de exportação, principalmente aquelas relativas à postergação do aproveitamento pelo contribuinte do crédito relativo à aquisição de bens de uso e consumo.
Por ser constitucional e incondicionalmente assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores à exportação, tem o contribuinte o direito (que flui da própria Constituição, independe de previsão pela legislação infraconstitucional e não pode ser por ela contrariada) de aproveitar-se desses créditos (financeiros) de forma integral e imediata, desde que, obviamente, guardem eles relação com bens que participem, ainda que indiretamente, das atividades relacionadas com o comércio exterior exercidas pelo estabelecimento.
Isso foi expressamente admitido pela própria LC 87/1996 relativamente aos créditos referentes à entrada de energia elétrica e ao recebimento de serviços de comunicação (artigo 33, II e IV), de cuja utilização resulte operação de saída de mercadorias ou prestação posterior de serviços para o exterior[2].
A meu ver, o mesmo tratamento deve ser dado de forma ampla a todos os bens que participem direta ou indiretamente da atividade de exportação exercida pelo contribuinte, ainda que, para as relações internas, prevaleçam as restrições impostas pela LC 87/1996.
Esse direito do contribuinte, repita-se, flui de norma constitucional expressa e não pode ser restringido ou minimizado por regra de hierarquia inferior.
[1] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=228154 e http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=230941.
[2] No que concerne aos créditos relativos aos bens do ativo permanente, disposição semelhante foi adotada pela LC n. 87/96, mas limitou o respectivo crédito à proporção equivalente a 1/48 (art. 20, III), o que, em minha opinião, fere o mandamento constitucional comentado.
Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto Advogados, secretário-geral da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro e professor na Fundação Getulio Vargas.
Revista Consultor Jurídico, 13 de março de 2013
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