Tributação de lucros no exterior é oportunidade legislativa
Nos últimos dias se intensificaram as
notícias veiculadas pelos órgãos da mídia sobre a nova (e o que parece caminhar
para ser a última) rodada de negociações entre o governo federal e o
empresariado nacional para equacionar a turbulenta questão da tributação das
multinacionais brasileiras sobre os seus lucros gerados no exterior.
Embora a atual sistemática tenha sido
instituída em 2001, com a edição do famigerado artigo 74 da MP 2.158-35, em
razão do subsequente ajuizamento da ADI 2.588 pela Confederação Nacional da
Indústria, o fato é que desde então a incerteza e a dúvida remanescem pairando
sobre o tema. De um lado, pairam sobre as autuações fiscais elaboradas com base
naquele dispositivo legal, desde o primeiro instante desafiado por uma ação
direta de inconstitucionalidade e cujo resultado final foi proclamado no dia 10
de abril de 2013 em acórdão que sequer foi publicado. De outro, sobre as
diversas decisões gerenciais tomadas pelas empresas de grande porte quanto a
estratégia de internacionalizar as suas atividades operacionais em busca de uma
fatia no mercado globalizado.
Nesse ambiente de dúvida e incerteza,
certamente todos já perderam muito. De um lado, o Fisco que, apesar de lavrar
centenas de autuações fiscais, tanto na esfera administrativa como também
judicial não tem logrado manter a coerência e o fundamento de muitas delas,
além de não ter efetivamente arrecadado um real com a tributação sobre os
lucros no exterior (em razão da pendência no julgamento da ADI 2.588). De
outro, os contribuintes se veem limitados em seu campo de tomada de decisão
sobre a internacionalização de suas atividades operacionais e societárias, vez
que a indefinição gerada desde 2001 (e ainda não solucionada) se reflete
diretamente no ambiente de negócios no qual regularmente se movimentam os
empresários. Desse modo, a dúvida, a incerteza e a indefinição tornaram-se a
tônica nessa matéria.
Esse quadro, por si só, já se
apresenta trágico, com uma série de desdobramentos nefastos tanto para os
contribuintes como também para os órgãos arrecadadores. Mas não para por aí. Há
também a percepção de como o mundo enxerga o Brasil. Ora, convenhamos que o
Brasil sempre foi visto com reservas pelos países centrais. Exemplo que
ilustra isso é a denúncia pela Alemanha do tratado então firmado com o Brasil
para evitar a dupla tributação da renda. É tradicional a percepção de que a
alta carga tributária incidente sobre a operação nacional, aliada à excessiva
burocracia no cumprimento das obrigações tributárias, eleva o Custo Brasil a
ponto de retirar boa parte da competitividade do produto brasileiro no mercado
globalizado. Além disso, com a paulatina recuperação dos países centrais (como
Estados Unidos da América do Norte e a Europa) aquela “febre” em torno do
Brasil (que parecia ser a bola da vez) já se arrefeceu ao mesmo tempo em que
muitos investidores estrangeiros afugentaram-se devido às dificuldades
rotineiras enfrentadas pela empresa brasileira.
No arriscado jogo de “tudo ou nada”
que foi levado a cabo pelas partes envolvidas em razão da elevada expectativa
de êxito que cada uma atribuía ao desfecho da Adi 2.588, muito deixou de ser
feito pelo Brasil, tanto pelo governo como também pelo empresariado.
O governo federal errou ao jogar suas
fichas no sentido de que a legislação “Frankenstein” criada resolveria todos os
seus problemas relacionados à tributação dos lucros no exterior (hoje
reconhecidamente sui generis pela generalidade dos países e
mantendo a tradição tupiniquim de dar uma pitada tropical no que por aqui
aparece). O contribuinte, compreendido como o empresariado composto pelas
multinacionais brasileiras, errou ao jogar as suas fichas no sentido de que
poderia alcançar no âmbito da ADI 2.588 a declaração integral de
inconstitucionalidade do referido artigo 74 (que, diga-se de passagem, com
ligeiros ajustes ficaria em linha com o que a generalidade dos países pratica
pelo mundo afora).
A paulatina radicalização da posição
de cada um desses jogadores em torno do resultado esperado da ADI 2.588 levou
ao atual estágio de indefinição máxima: a ação ainda não foi concluída (vez que
o seu acórdão está pendente de publicação e será possível a oposição de
embargos de declaração pela Autora, se entender cabível), sob qualquer aspecto
que se veja a questão em torno da decisão que será prolatada ela certamente não
esgotará todas as possibilidades (até porque não foram endereçadas na petição
inicial e não foram suscitadas durante o julgamento), as partes contabilizam
uma cifra de um passivo potencial em torno de R$ 70 bilhões em autuações
fiscais sobre o tema (sendo só a Vale com aproximadamente metade desse montante),
a legislação nacional sobre o tema permanece gerando confusão, dúvida e
incerteza (o que dificulta muito o ambiente de negócios para as multinacionais
brasileiras e até mesmo investidores estrangeiros) e, o pior de tudo, tal
situação se arrasta desde 2001.
No plano internacional, no dia 05 de
setembro começou a reunião da cúpula do G20 em São Petesburgo (Rússia). Dentre
os diversos temas da pauta, consta o manuseio de instrumentos para fechar os
buracos e as brechas existentes na legislação tributária dos países, de modo a
dar efetividade às quinze recomendações do chamado “Base Erosion and Profits
Shifting Action Plan” (elaborado pela OCDE). Isso, com vistas a provocar um
realinhamento tributário a partir de novos padrões globais para a futura
neutralização de vantagens fiscais.
Na semana passada, especialistas em
Direito Tributário do mundo inteiro estiveram reunidos entre os dias 25 a 30 de
agosto em Copenhagen (Dinamarca) para discutir o que tem ocorrido nos
diferentes países quanto ao fenômeno da erosão da base tributável, como evitar
que ocorra o deslocamento artificial de lucros e ganhos e quais caminhos seguir
nos próximos passos.
Ao mesmo tempo em que os países
centrais buscam manter (e até aumentar) a sua arrecadação com a crescente
proibição do deslocamento de lucros e ganhos de empresas de modo artificial
para países periféricos de menor (ou até nenhuma) tributação, eles se preocupam
em não asfixiar os seus principais campeões nacionais que competem por fatias
cada vez maiores no mercado globalizado nos diversos setores que atuam.
O ponto almejado é a tributação justa
e equilibrada, na qual o recolhimento do tributo é feito de acordo com a
capacidade contributiva do contribuinte. Nesse sentido, não é justo e nem
desejável que verdadeiras gigantes (como o Facebook, a Microsoft e a Apple,
dentre tantas outras) recolham tributos a alíquotas ínfimas sobre as suas
operações. Também não é justo que haja a dupla tributação a onerar
demasiadamente o custo do produto que possivelmente inviabilizaria a sua comercialização
considerando a concorrência mundial atual. Aqui, a pedra de toque é o
equilíbrio.
Voltando ao Brasil, a preocupação
central tanto do Fisco como também dos contribuintes parece ser com a
operacionalização e alguns aspectos secundários na regulamentação da
sistemática de tributação das multinacionais brasileiras dos lucros gerados no
exterior. Todavia, levando em conta que a disciplina conta com diversas lacunas
no Brasil, a sua regulamentação tardia pode suprir algumas, esclarecer certos
pontos que permanecem ambíguos há décadas e até sinalizar para que direção a
política econômica vai caminhar nos próximos anos (internacionalização das
multinacionais brasileiras ou concentração territorial da atividade
empresarial). Isso sem dúvida é salutar.
Nesse sentido, as notícias veiculadas
pelos órgãos da mídia dão conta dos seguintes pontos que estão sendo discutidos
e negociados entre o governo e o empresariado para a nova legislação:
parcelamento dos débitos (que parece ter passado de até cinco anos para até dez
anos), desconto sobre multas e juros de mora, criação de um regime de
tributação com o pagamento de um piso mínimo de imposto de 20% no exterior (ao
invés de 22% como anteriormente noticiado), diferimento para o pagamento de
tributo quando a empresa se situar em país com tributação normal em até oito
anos e tributação imediata quando ela se situar em país considerado paraíso
fiscal.
Há notícias de que remanesce
controvertida na negociação a questão específica da consolidação vertical dos
resultados no exterior com a possibilidade de compensação cruzada de prejuízos
entre controlada e coligadas do mesmo grupo empresarial. De um lado o Governo
teme o desconto de prejuízos “fabricados” com as atividades não operacionais.
De outro, algumas empresas oferecem abrir suas contas e exclui-los, consoante
notícia veiculada pelo jornal O Estado de S. Paulo.
De tudo o que tem sido divulgado
pelos órgãos da mídia, parece que perderemos (nós, o Brasil, tanto o Fisco como
também os contribuintes) uma excelente oportunidade de corrigir algumas
distorções que foram geradas no passado e cristalizadas com o passar dos anos.
Desse modo, eventual legislação sobre
a sistemática de tributação dos lucros das multinacionais brasileiras geradas
no exterior poderia versar sobre a diferença inerente às diversas situações, de
acordo com o país onde se situar a sua controlada: se em paraíso fiscal, então
em consonância com o que restou decidido na ADI 2.588 a sua tributação no
Brasil seria automática, na linha do voto do Ministro Joaquim Barbosa (e aí sim
o artigo 74 da MP 2.158-35/01 exerceria autêntico papel de regra CFC, como na
generalidade dos países que a adotam); se em país com tributação normal, com o
diferimento para quando a renda fosse efetivamente disponibilizada para o
investidor no Brasil (ou no prazo de até oito anos, como tem sido especulado
pelas notícias sobre a legislação que se debate); ou se em país com o qual o
Brasil tenha firmado tratado para evitar a dupla tributação da renda e prevenir
a evasão fiscal, quando a situação concreta deveria ser subsumida a disciplina
ali prevista (com a tributação exclusiva dos lucros ou concorrente dos
dividendos, por exemplo).
Isso lograria colocar o Brasil
alinhado com o restante dos países desenvolvidos do mundo que geralmente adotam
essa tripartição no tratamento das rendas oriundas das controladas no exterior
de suas investidoras multinacionais. Resta saber se há vontade política e, pelo
menos, clareza de parte a parte para saber se esse é o real foco do debate
nesse momento, se há estratégia melhor ou diferente a seguir e, nesse caso, se
a chance de êxito em alcança-la é significativa... ou não. De qualquer modo,
nesse tema urge que o Fisco e os contribuintes comecem a colaborar e cooperar,
ao invés de assumirem posições antagônicas e insuperáveis em busca de um jogo
de “tudo ou nada” que já não tem qualquer razão de ser, considerando o atual
estágio de coisas, o cenário mundial hoje e a necessária e urgente recolocação
do Brasil no cenário internacionalizado com mais força para competir no mercado
globalizado.
Nesse sentido, vamos esperar para ver
se a oportunidade legislativa de corrigir os equívocos e as falhas do passado
se concretizará rumo a maior pacificação na relação entre o Fisco e os
contribuintes ou não, acirrando ainda mais o ânimo de parte a parte com a
renovação de novas rodadas de discussões tanto na esfera administrativa como
também na seara judicial, contabilizando mais alguns longos anos de
indefinição, dúvida, incerteza e muita insegurança jurídica.
Fábio Martins de
Andrade é advogado, doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra
“Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista
de cunho econômico e as decisões do STF”.
Revista Consultor Jurídico,
19 de setembro de 2013
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