Em
decorrência da importância da participação do setor petrolífero na economia
nacional, a importação de bens destinados às atividades de pesquisa e lavra de
petróleo e gás natural é realizada sob o regime aduaneiro especial denominado
Repetro, que permite que equipamentos destinados às atividades de pesquisa e
lavra das jazidas de petróleo e gás natural ingressem no País com a suspensão
dos tributos federais incidentes (II, IPI, PIS e Cofins, além do adicional de
frete para renovação da marinha mercante – AFRMM).
Esses tributos permanecem
com a exigibilidade suspensa pelo período de utilização do regime, que se
extingue quando há a reexportação dos bens nele admitidos, normalmente,
embarcações e/ou plataformas e seus componentes, objeto de contratos de afretamento
realizadas com empresas localizadas no exterior.
No âmbito estadual, o
Convênio ICMS 130/2007 autoriza os estados e o Distrito Federal a reduzir a
base de cálculo do ICMS incidente nas importações de bens importados destinados
à fase de produção realizadas sob o regime do Repetro, de forma que a carga
tributária seja equivalente a 7,5% em regime não cumulativo ou,
alternativamente, a critério do contribuinte, a 3%, sem apropriação do crédito
correspondente. Se os bens importados forem destinados à fase de exploração, o
referido convênio autoriza que as respectivas importações sejam isentas, ou
beneficiadas com redução de base de cálculo que leve a carga tributária ao
patamar de 1,5%.
Faço a ressalva preliminar
de que, neste estudo, eu me abstrairei da inconstitucionalidade que, a meu ver,
assola a incidência do ICMS nessas importações, ainda que sobre bases reduzidas
(já que, no plano constitucional, a incidência do ICMS-Importação pressupõe a
transferência da propriedade do bem importado, o que não ocorre nas importações
realizadas sob o Repetro, nem nas sucessivas trocas de beneficiário que sejam
posteriores), e examinarei a questão, por amor ao debate, como se essa
incidência fosse juridicamente possível.
Com a ressalva acima,
temos, em suma, que as importações realizadas sob o amparo do Repetro são
beneficiadas com suspensão dos tributos federais e, em regra, com pagamento do
ICMS calculado sobre bases de cálculo reduzidas, principalmente quando os bens
importados são destinados à fase de produção, já que não há a possibilidade de
os estados concederem isenções nessas circunstâncias, nos termos do Convênio
130/2007
Por motivos que podem
variar desde a cessão a terceiros do contrato de afretamento dos bens
importados à reestruturação societária do grupo a que pertence a empresa que
realizou a importação beneficiada, faz-se, por vezes, necessária a “mudança do
beneficiário” do Repetro, conforme permite o seguinte dispositivo da Instrução
Normativa (IN) 844, de 9 de maio de 2008, da Secretaria da Receita Federal do
Brasil:
“Art. 27. Poderá ser
concedida nova admissão temporária, sem exigência de saída do território
aduaneiro, desde que atendidos os requisitos para aplicação do regime previsto
nesta Instrução Normativa e observadas as formalidades exigidas para a extinção
e concessão do regime, dispensada a verificação física do bem, nas hipóteses
de:
I - mudança de beneficiário
do regime;
......................................................
§ 2º. Na hipótese do inciso
I do caput, a concessão de regime está condicionada à anuência do beneficiário
anterior.
§ 3º. Nas hipóteses
previstas nos incisos I e II do caput, o regime anterior será considerado
extinto após o desembaraço aduaneiro da declaração de admissão no novo regime
ou após esgotado o prazo do regime anterior, o que ocorrer primeiro.
§ 4º. A responsabilidade do
novo beneficiário inicia-se com o desembaraço aduaneiro da declaração de
admissão previsto no § 3º."
Portanto, por expressa
determinação da IN acima, mesmo sem que ocorra a saída do bem importado do
território nacional, a mudança do beneficiário do Repetro importa na
apresentação de nova Declaração de Importação (DI) e, por conseguinte, na
realização de novo desembaraço aduaneiro, bem como na assunção, por parte do
cessionário do regime, de todos os tributos federais suspensos por ocasião da
concessão original do regime, que são constituídos em Termo de Responsabilidade
(TR).
Tendo em vista que a LC nº
87/96 determina que o fato gerador do ICMS-Importação ocorre “no momento do
desembaraço aduaneiro de mercadorias ou bens importados do exterior"
(artigo 12, inciso IX), as autoridades fiscais estaduais têm entendido, muito
equivocadamente, que novo ICMS deve ser pago por ocasião desse segundo
desembaraço aduaneiro da declaração de admissão no novo regime, porque, na sua
visão, ele configuraria, por si só, novo fato gerador do imposto.
A linha de raciocínio
adotada pela fiscalização é a de que a troca de beneficiário do Repetro equivaleria
à nova importação, tendo em vista que, com a extinção do regime anterior, o bem
só não é reexportado porque há expressa determinação da legislação nesse
sentido, que dispensa a saída dos bens do território nacional quando o
respectivo Repetro é objeto de troca de beneficiário.
Com a devida vênia do
entendimento acima, essa linha de raciocínio deveria ter levado a conclusão
diametralmente oposta: se a legislação dispensa a reexportação do bem, isso
significa que não haverá outra importação a ser realizada e que,
consequentemente, não haverá, também, a ocorrência de fato gerador que torne
necessário o pagamento de novo ICMS-Importação.
De fato, ao definir a
incidência do ICMS nas importações, a Constituição Federal de 1988 determina
que o imposto incide “sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do
exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte
habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade" (artigo 155, II,
parágrafo 2o, IX, “a”).
As expressões
constitucionalmente utilizadas para definir e limitar a competência dos Estados
relativamente à incidência do imposto estadual devem ser interpretadas de forma
precisa, que evite extrapolações ou invasões de competência através do
exercício abusivo do poder de tributar por parte dos estados (é o que deflui do
princípio contido no artigo 110 do Código Tributário Nacional).
E também foi o que entendeu
o Supremo Tribunal Federal, ao julgar, entre outros, o RE 166.772-9/RS, relator
ministro Marco Aurélio, em sessão plenária, quando afirmou que os vocábulos e
expressões contidos na CF devem ser sempre interpretados no seu sentido técnico
e legal.
Na sua acepção técnica, a
importação é o ato de trazer bens estrangeiros para dentro do país, o que se
inicia com o embarque dos bens no exterior e se finda com a sua entrada no
território nacional, vale dizer, com a transposição da fronteira política do
país.
O fato cuja ocorrência faz
nascer a obrigação de pagar o ICMS-Importação é, portanto, a entrada (física)
do bem ou mercadoria proveniente do exterior, no território nacional.
O momento em que se dá essa
ocorrência do fato gerador foi objeto de posicionamentos jurisprudenciais
divergentes, que variaram conforme o ordenamento constitucional que regia a
incidência do imposto (CF/69 ou CF/88).
Assim, na vigência da
Constituição anterior (CF/69), o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 577,
segundo a qual, "na importação de mercadorias do exterior, o fato gerador
do imposto de circulação de mercadorias ocorre no momento de sua entrada no
estabelecimento do importador".
Na vigência da atual
Constituição (CF/88), o STF entendeu que o novo momento da ocorrência do fato
gerador do ICMS seria o do desembaraço aduaneiro da mercadoria, tendo,
inclusive, editado a Súmula 661 com a seguinte redação: “na entrada de
mercadoria importada do exterior, é legítima a cobrança do ICMS por ocasião do
desembaraço aduaneiro”.
Esse novo posicionamento
jurisprudencial foi adotado pelo legislador complementar que, como visto, ao
editar a LC 86/1997, criou expressa determinação nesse mesmo sentido (de que o
fato gerador do imposto ocorre “no momento do desembaraço aduaneiro de
mercadorias ou bens importados do exterior").
É mandatório notar que o
fato gerador do imposto continua sendo, e sempre será, a entrada (física) do
bem proveniente do exterior. O desembaraço aduaneiro é mero elemento definidor
do momento em que o imposto deve ser recolhido, não podendo jamais ser
considerado o aspecto material da incidência do ICMS-Importação, que se
constitui, uma única vez, com a entrada física do bem no país.
Com efeito, o fato gerador
do ICMS-Importação não se materializa com o referido desembaraço, que pode
ocorrer, como no caso em exame (mudança de beneficiário do Repetro), em
circunstâncias outras, que não pressupõem efetivo ingresso de bem ou mercadoria
no território nacional.
Para que o desembaraço
aduaneiro produza o efeito de tornar devido o ICMS, ele terá necessariamente
que se referir a efetiva e prévia importação que ainda não tenha sofrido a
incidência do imposto. Sob esse aspecto, é importante notar que as importações
realizadas sob o regime do Repetro estão sujeitas, em regra, a essa incidência,
ainda que em bases reduzidas, e o imposto é regularmente pago.
Em outras palavras, não
poderá o legislador ou o intérprete da norma exigir o imposto sobre atividade
que não configure, em sua essência, efetiva importação, ou seja, em
circunstâncias que não configurem entrada de bem ou mercadoria proveniente do
exterior, ou que digam respeito a bem que já se encontra no território nacional
(e que tenha nele ingressado regularmente, inclusive no que diz respeito à
observância das normas tributárias aplicáveis).
O desembaraço aduaneiro
decorrente da troca de beneficiário do Repetro é relativo a bem que já está no
território brasileiro e, portanto, não se refere a qualquer nova importação que
justifique outra incidência do ICMS. Se esse desembaraço diz respeito a alguma
importação, será aquela original, realizada pelo beneficiário original do
Repetro, e já objeto de regras próprias de incidência do imposto. Não há nele
qualquer nova manifestação de capacidade contributiva que enseje a
possibilidade de nova oneração tributária.
Absolutamente improcedente,
portanto, o entendimento das autoridades fiscais estaduais aqui tratado, tendo
em vista que:
(i) a incidência do
ICMS-Importação pressupõe a efetiva entrada física do bem no território
nacional;
(ii) o desembaraço
aduaneiro diz respeito apenas ao momento em que o imposto deve ser recolhido,
jamais podendo ser considerado como aspecto substancial configurador da
incidência do ICMS-Importação, que se materializa, uma única vez, com a entrada
do bem no país;
(iii) a exigência de novo
ICMS-Importação por ocasião do desembaraço proveniente da mudança do
beneficiário do regime aduaneiro é descabida, na medida em que diz respeito a
bem que já está no território brasileiro e cujo imposto já foi recolhido;
(iv) pela legislação de
regência (IN 844/2008), não há, no procedimento de troca de titularidade, nova
importação que justifique outra incidência do ICMS.
Faço aqui ressalva
semelhante a que fiz naquela ocasião: a importância do setor torna mandatório
que as regras de tributação, além de eficazes, no sentido de desonerar os que
nele resolvam investir, sejam claras e observadas com um mínimo de bom senso
por parte das autoridades fiscais, de forma a que todos os envolvidos se
acomodem em um ambiente de absoluta segurança jurídica, cujos riscos possam ser
facilmente mensurados.
Gustavo Brigagão é
sócio do escritório Ulhôa Canto Advogados, secretário-geral da Associação Brasileira
de Direito Financeiro (ABDF), diretor do Centro de Estudos das Sociedades de
Advogados (Cesa), presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro e professor
na Fundação Getulio Vargas.
Revista Consultor Jurídico,
27 de novembro de 2013
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