Desgovernança portuária
Mais de um ano após a mudança do marco legal dos portos instituído pela Lei nº 12. 815, de 2013, o programa governamental de arrendamentos e autorizações de instalações portuárias apresentou poucos resultados. Em que pesem as 23 autorizações já concedidas para a construção de terminais privados, os benefícios concretos para o comércio exterior brasileiro só se farão sentir quando o novo modelo estiver implantado no conjunto dos portos atualmente em operação. Mas o processo de transição está paralisado por tempo indeterminado.
Mesmo levando em conta que o atraso se deve, em parte, a tensões internas na esfera pública, especialmente entre o Poder Executivo Federal e o Tribunal de Contas da União, é forçoso reconhecer que a nova lei, se por um lado avançou em conceitos fundamentais para pavimentar o caminho da modernização dos portos, por outro lado retrocedeu em questões que até então estavam sendo resolvidas. Os instrumentos de governança criados pela lei anterior, por exemplo, em vez de terem sido aperfeiçoados na elaboração do novo marco legal, foram simplesmente suprimidos.
Antes da lei nº 12.815/2013, em cada porto organizado o Conselho de Autoridade Portuária (CAP), órgão deliberativo que representava o conjunto dos agentes econômicos, governamentais e trabalhistas regionais, encarregava-se de planejar, sistematizar demandas e administrar conflitos de forma que as decisões estratégicas relativas ao desenvolvimento portuário contemplassem, minimamente, os interesses comuns. Nessa arquitetura institucional as Companhias Docas, administradoras da maioria dos portos públicos, eram, ou deveriam ser, o braço executivo dos Conselhos de Autoridade Portuária (CAPs).
Capturada pelo Executivo federal, a gestão dos portos ficou à mercê do corporativismo
Tal configuração não chegou a funcionar de maneira satisfatória, tendo sido negativamente afetada pelo anacrônico modelo de gestão das Docas e pela contumaz interferência político-partidária na administração dos portos. O atual governo reconheceu essas falhas, traçando um agudo diagnóstico dos problemas estruturais das Cias. Docas, mas errou na solução ao optar pela centralização das decisões na esfera ministerial. A nova lei cassou o poder deliberativo dos CAPs e subtraiu competências das Docas, enfraquecendo a autonomia regional e a participação da comunidade local.
Havia equilíbrio na governança portuária quando os quatro blocos representados nos CAPs - governo (federal, estadual e municipal), operadores, trabalhadores e usuários - precisavam negociar internamente suas diferenças para aprovar diretrizes estratégicas, política tarifária e outros assuntos concernentes à competitividade do porto. A nova lei rompeu esse equilíbrio, conferindo ao governo federal, que na condição de poder concedente já exerce um forte controle sobre a atividade, poderes quase absolutos para ditar os rumos de todos os portos organizados do país.
Na verdade, o governo tem dificuldades para estabelecer boas práticas de governança até mesmo entre os agentes públicos afetados, e a desburocratização da atividade portuária até hoje não deslanchou: o Porto 24 Horas, porque os agentes de autoridade nos portos não operam nesse período sob a alegação de falta de pessoal; e o Porto sem Papel, porque a Receita Federal exige o uso do seu sistema próprio de informações, obrigando as empresas a duplicar o trabalho burocrático.
Capturada pelo Executivo federal, a gestão portuária fica à mercê do corporativismo dos agentes públicos - órgãos reguladores e fiscalizadores de diversos ministérios, que, apesar de todos os esforços do governo, permanecem imunes ao prometido "choque de gestão". Não bastasse o indisfarçável clima de desarmonia entre os órgãos federais e as forças produtivas que atuam nos portos, a Antaq, agência reguladora do setor, em vez de cumprir seu papel propriamente regulador, que consistiria em estabelecer regras claras, com base na lei, e zelar pelo equilíbrio entre o interesse público e o privado, cede às pressões corporativistas da máquina pública e se posiciona como mais uma instância de controle do dia a dia da administração portuária, agindo de forma intervencionista e super-reguladora, gerando mais burocracia e sobrecarregando as empresas com tarefas e custos desnecessários.
"Desgovernança" é o termo que melhor define o atual cenário. Preocupada com esta e outras falhas que põem em risco as conquistas alcançadas a partir da Lei 12.815, a ABTP, que representa o conjunto dos terminais portuários do país, públicos e privados, elaborou um documento dirigido aos principais candidatos à Presidência da República contendo propostas para fazer avançar o marco regulatório.
Os portos, sejam públicos ou privados, constituem elos da cadeia logística de transportes, ou seja, pontos de conexão, de convergência e redistribuição de fluxos pelas redes de transporte terrestres e aquaviárias. Seus principais atributos são a agilidade e a capacidade de gerenciar, simultânea e eficientemente, múltiplas interações entre agentes com características inteiramente distintas. Por isso, o setor demanda um modelo de gestão descentralizado, flexível, capaz de mobilizar a criatividade dos agentes locais em prol da competitividade do porto. Não será com decretos nem com atos discricionários que o novo governo irá avançar na modernização do sistema portuário, mas sim adotando boas práticas de governança, o que pressupõe disponibilidade permanente para o diálogo e a negociação.
Fonte: Valor Econômico/Wilen Manteli é presidente da Associação Brasileira de Terminais Portuários (ABTP).
http://www.portosenavios.com.br/portos-e-logistica/26645-desgovernanca-portuaria
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