LEGISLAÇÃO

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Princípio da vinculação física pode deixar de ser aplicado em drawback


Princípio da vinculação física pode deixar de ser aplicado em drawback

É certo que, pelas mais diversas razões e necessidades, o legislador constantemente promove modificações no texto de normas jurídicas em vigor. Em alguns casos, embora não expressamente modifiquem a sua escrita, provocam alterações, nos planos da eficácia e da vigência, por meio da introdução, no direito positivo, de outras normas jurídicas que, com relação àquelas, são em parte ou inteiramente incompatíveis ou regulam a mesma matéria nelas tratadas.
Há hipóteses em que essas novas normas jurídicas, inadvertidamente ou não, vão muito além: atingem situações pretéritas, promovendo alterações significativas em situações já aparentemente consolidadas no tempo.
É o que, a nosso juízo, ocorreu quando o artigo 17 da Lei 11.774, de 2008 (conversão da Medida Provisória 428, de 2008), passou a permitir que, para o efeito de comprovação do adimplemento do compromisso de exportação nos regimes aduaneiros suspensivos (entre os quais o drawback, na modalidade suspensão), “destinados à industrialização para exportação, os produtos importados ou adquiridos no mercado interno com suspensão do pagamento dos tributos incidentes podem ser substituídos por outros produtos, nacionais ou importados, da mesma espécie, qualidade e quantidade, importados ou adquiridos no mercado interno sem suspensão do pagamento dos tributos incidentes, nos termos, limites e condições estabelecidos pelo Poder Executivo”. Essa era a redação original do dispositivo, posteriormente alterada, inclusive para permitir a sua aplicação ao regime aduaneiro de isenção e alíquota zero.
A expressão “da mesma espécie, qualidade e quantidade” aplica-se, como é notório, aos produtos fungíveis, aqueles que, por apresentarem-se com essas mesmas características, podem ser substituídos por outros (artigo 85 do vigente Código Civil).
O efeito para trás da inovação legislativa repousa no fato de que, ao menos até agora, vinha-se entendendo, embora com divergências, que, aodrawback-suspensão, dever-se-ia aplicar o controvertido “princípio da vinculação física”, segundo o qual os insumos importados com suspensão dos tributos aduaneiros deveriam ser obrigatoriamente aplicados na industrialização do produto posteriormente exportado. Malgrado não explicitado na letra da lei, é o que se extrai do artigo 78, II, do Decreto-lei 37, de 1966, que fala em “importação de mercadoria a ser exportada após beneficiamento, ou destinada à fabricação, complementação ou acondicionamento de outra a ser exportada”.
Em face do que dispõe o artigo 78, II, do Decreto-lei 37, de 1966, e da natureza fungível de alguns insumos importados, estabeleceu-se, no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), divergência de entendimentos, que, não fosse pela introdução legislativa, estaria longe de terminar. Para algumas turmas deste colegiado, o princípio da vinculação física, ainda que os insumos apresentassem a natureza de bens fungíveis, deveria ser obrigatoriamente observado, uma vez que o seu emprego no produto a exportar seria da própria essência do regime suspensivo (Acórdão CSRF 03-05.557, de 13/11/2007; Acórdão 3ª Seção/1ª Câmara/2ª Turma Ordinária nº 3102-002.220, de 27/05/2014). Para outras, no entanto, a fungibilidade dos insumos importados autorizaria a sua substituição por outros adquiridos no mercado interno, desde que, obviamente, os produtos a exportar fossem destinados à exportação, na qualidade, quantidade e tempo referidos no Ato Concessório (Acórdão CSRF 03-05.573, de 25/02/2008; Acórdão 3ª Seção/4ª Câmara/ 3ª Turma Ordinária 3403-003.146, de 19/08/2014).
Todavia, com a permissão introduzida pelo artigos 17 da Lei 11.774, de 2008, a observância do princípio em exame deixou de ser exigida, já que ao beneficiário do regime suspensivo permitiu-se importar insumos do exterior, vendê-los no mercado interno e, posteriormente, adquirir outros, também no mercado interno, nacionais ou importadas, da mesma espécie, qualidade e quantidade (é como dispõe a redação atual do art. 17 da Lei 11.774, de 2008, conferida pela Lei 12.350, de 2010), para, em seguida, empregá-los no processo de industrialização daqueles produtos a exportar, nos termos e condições estabelecidas no Ato Concessório que concedeu o benefício. Noutras palavras, positivou-se o que só em teoria se vislumbrava — o conhecido “princípio da fungibilidade”, adotado, para o caso, em algumas decisões do Carf.
O que nos interessa aqui, cumpre ressaltar, não é a conveniência ou não da medida — mesmo porque absolutamente tardia essa discussão —, mas, como já deixamos entrever, os seus reflexos em relação a fatos passados, mais especificamente em relação aos lançamentos de ofício através do quais exigidos os tributos aduaneiros não recolhidos, em face de um alegado descumprimento do regime suspensivo pela não observância do princípio da vinculação física.
Entendemos que, fundamentado o lançamento unicamente na não observância do princípio em exame, o lançamento ainda pendente de julgamento na esfera administrativa deve ser cancelado pelas instâncias julgadoras.
A razão é simples: O artigo 106, II, “b”, do CTN estabelece que a lei deve aplicar-se a ato ou fato pretérito quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo (uma observação adicional: há quem sustente, e com razão, que a primeira parte desse dispositivo apenas reproduz o disposto na alínea “a” do mesmo inciso, de modo que a aplicação de um ou de outro, por indiferentes, vale aqui).
Ora, empregar os insumos importados no produto a ser exportado que resulta do processo de industrialização é conduta comissiva encartada, ainda que implicitamente, no artigo 78, II, do Decreto-lei 37, de 1966, obrigação que, por norma jurídica posterior de mesma hierarquia, deixou de ser exigida para os insumos fungíveis, fato que reclama a sua aplicação retroativa por força do artigo 106, II, “b”, do CTN.
Portanto, ao menos para aqueles caos em que os insumos importados com suspensão podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade, o que passou a importar para o cumprimento do regime suspensivo é tão só o fato de o produto resultado do processo de industrialização ter ou não sido exportado nas condições indicadas no ato concessório, motivo por que, além do cancelamento, pelas instâncias julgadoras, dos autos de infração já lavrados e ainda não definitivamente julgados (fundamentados apenas no descumprimento do princípio da vinculação física!), também passou a ser absolutamente impertinente, porque desnecessário, exigir que o seu beneficiário arque com os custos de segregar os estoques dos insumos fungíveis adquiridos no mercado interno dos importados com suspensão dos tributos aduaneiros.
 é Auditor-Fiscal da Receita Federal, Conselheiro Titular da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda.
Revista Consultor Jurídico, 29 de julho de 2015, 8h00

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