LEGISLAÇÃO

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Fazenda não pode dizer o que é crime, decide STJ

Fazenda não pode dizer o que é crime, decide STJ

Fonte: jota.info

Por Felipe Recondo
Brasília

Uma decisão da 3a Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) serviu de recado para o Ministério da Fazenda: uma decisão administrativa não pode dizer o que é e o que não é crime. Por 5 votos a 4, os ministros decidiram que o princípio da insignificância não pode ser aplicado para débitos tributários superiores a R$ 10 mil.

Relator do processo, o ministro Rogerio Schietti Cruz capitaneou a decisão majoritária e deixou, em seu voto, a afirmação de que um portaria do Ministério da Fazenda (Portaria MF 75/12) não poderia alterar o valor estabelecido em lei.

“Sabem todos que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm entendido que, nos crimes contra a ordem tributária (materializados na Lei no 8.137/90) e nos crimes de descaminho (previsto no art. 334 e seus parágrafos, do CP), a conduta do agente é atípica, por insignificância penal, se o total dos tributos sonegados ou iludidos não superar R$ 10.000,00, na forma do art. 20 da Lei 10.522/02”, afirmou o ministro no voto.

A portaria do Ministério da Fazenda alterou o valor do teto, para fins de incidência do princípio da bagatela, para R$ 20 mil. A mudança tinha como fundamento o fato de que seria economicamente desvantajoso para a União cobrar judicialmente dívidas abaixo desse valor.

Nos tribunais superiores o novo limite vinha sendo aplicado para trancar as ações contra os responsáveis. No STJ, havia contradições entre as Turmas de Direito Penal. A decisão da 3aSeção, na semana passada, visa encerrar a ambiguidade.

“Soa imponderável, contrária à razão e avessa ao senso comum tese jurídica que, apoiada em mera opção de política administrativo- fiscal, movida por interesses estatais conectados à conveniência, à economicidade e à eficiência administrativas, acaba por subordinar o exercício da jurisdição penal à iniciativa da autoridade fazendária”, consignou o ministro na ementa do julgamento.

No entendimento do ministro, não pode a administração pública, em razão de“conveniências administrativo-fiscais do Procurador da Fazenda Nacional”, definir o que a “polícia deve investigar, o que o Ministério Público deve acusar e, o que é mais grave, o que – e como – o Judiciário deve julgar”.

Votaram nesse sentido, acopanhando o relator, os ministros Felix Fischer e Maria Thereza de Assis Moura e os desembargadores convocados Ericson Maranho e Walter de Almeida Guilherme. Em sentido contrário, foram os ministros Sebastião Reis Júnior, Nefi Cordeiro, Gurgel de Faria e o desembargador convocado Newton Trisotto.

Portaria Ministerial não se equipara à lei nova mais benéfica.

No caso concreto julgado pelo STJ, o Ministério Público Federal recorreu de decisão da 8aTurma do Tribunal Regional Federal da 4a Região que confirmou decisão de absolvição de uma pessoa acusada de importar mercadorias estrangeiras sem pagar o tributo devido. O valor calculado era de R$ 13.224,63. Como o valor era inferior ao R$ 20 mil estipulados pelo Ministério da Fazenda, o responsável foi absolvido sumariamente.

“A Portaria Ministerial não se equipara à lei nova mais benéfica, porquanto não se trata de ato legislativo oriundo do Congresso Nacional apto a ensejar a revogação da Lei n. 10.522/2002. Ademais, esta Lei não dispôs sobre a possibilidade de que o agente do Ministério da Fazenda estabelecesse critérios de disposição da dívida fiscal”, argumento o Ministério Público no recurso. Para além da tese, o crime cometido neste caso é anterior à edição da portaria do Ministério da Fazenda.

O ministro Rogerio Schietti afirmou ainda na ementa do voto que decisões judiciais favoráveis ao limite de R$ 20 mil deixavam impunes condutas graves que provocam prejuízo aos cofres públicos.

“Para um país que sonha em elevar sua economia a um grau de confiabilidade, em distribuir renda de modo justo e dar tratamento isonômico a todos os seus cidadãos (artigo 5º, caput, da Constituição da República), é incompreensível que se consolide uma jurisprudência tão dúctil na interpretação de condutas que, ao contrário de tantas outras tratadas com rigor infinitamente maior, causam tamanho desfalque ao erário e, consequentemente, às políticas públicas e sociais do país”, disse o ministro-relator.

Ainda no seu voto, o ministro afirmou ser “inquietante” os tribunais superiors adotarem entendimento severo para acusados de crimes de menor potencial lesivo, como furtos, e menos rígida quando em jogo os crimes contra a ordem tributária. E menciona diversos exemplos.

Na Sexta Turma, disse o ministro, a insignificância não é caracterizada nos casos de furto:

a) de bens avaliados em cerca de 30% do valor do salário mínimo vigente à época do fato(AgRg no AREsp 577.880/DF, Rel. Ministro Sebastião Reis Junior, DJe 28/10/2014);

b) de bens avaliados em R$ 135,00, tendo por vítima o próprio empregador do agente (AgRg no RHC 33.993/AL, minha relatoria, DJe 24/9/2014);

c) de gêneros alimentícios, produtos de limpeza, uma caixa de fósforos e um par de tênis, em residência, mediante rompimento de obstáculo, danificando a porta dos fundos do domicílio da vítima (HC 183.889/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 26/8/2013; AgRg no REsp n. 1.392.545/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, DJe 12/9/2013);

d) de 51 metros de cabos de energia elétrica de diversas casas, danificando-os na retirada. (HC 184.556/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 22/8/2013);

e) de 10 metros de tela de arame, de propriedade da Prefeitura Municipal de Lajeados. (AgRg no AREsp n. 388.697/RS, DJe 02/10/2014);

f) de objetos do interior de um estabelecimento comercial que, apesar de avaliados em apenas R$ 35,00, foram subtraídos mediante arrombamento, em plena madrugada (HC 192.530/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 14/5/2013);

g) de objetos guardados no interior de um automóvel, danificando o veículo ao procurar retirar os itens, sendo o paciente multirreincidente específico e praticando o fato durante o repouso noturno e em coautoria (HC 258.743/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 8/3/2013);

h) em coautoria, do caixa de estabelecimento comercial, pulando para dentro do balcão e aproveitando-se da distração do responsável, sendo pego, logo depois, com maconha, cujo crime de posse só não foi firmado em face da extinção da punibilidade [...] (HC 180.726/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 20/2/2013);

i) de bolsa contendo documentos pessoais e cartões bancários, estando o autor do delito em cumprimento de pena pelo cometimento de outro crime contra o patrimônio (HC 240.460/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 29/6/2012);

j) de uma bicicleta, em concurso de agentes, e atribuição de falsa identidade ao ser preso (HC 213.827/SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, DJe 7/6/2013);

k) de uma colher de pedreiro, avaliada em R$ 4,00, mediante escalada de muro que protegia a residência (HC 253.360/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, DJe 1o/8/2013, ressalva da Ministra MARIA THEREZA);

l) de 3 peças de vestuário, avaliadas em R$ 129,88, em coautoria com um adolescente (HC 196.862/MG, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, DJe 18/12/2012).

Na Quinta Turma :

a) de um celular, ante a elevada reprovabilidade da conduta de um militar que, no exercício de atividade policial, apropriou-se do bem (HC n. 174.808/RJ, Relator Ministro Gurgel de Faria, DJe 20/10/2014);

b) de R$ 40,46, porque o réu é reincidente e o delito foi cometido mediante o rompimento de obstáculos (RHC n. 48.510/MG, Felix Fischer, DJe 15/10/2014);

c) cometido reiteradamente, denotando profissionalismo delitivo, praticado em doses módicas (AgRg no HC 241.351/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 11/9/2012);

d) de bens avaliados em R$ 27,00, mediante arrombamento da porta metálica que fechava o estabelecimento comercial, em coautoria com adolescente (HC 173.543/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 27/9/2011);

e) de dois sabonetes avaliados em R$ 48,00, sendo o autor reincidente (HC 221.927/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, DJe 25/9/2013);

f) de ferramentas avaliadas em R$ 100,00, do interior de uma residência (AgRg no REsp n. 1.331.563/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, DJe 19/9/2013);

g) por infrator habitual (AgRg no REsp n. 1.388.342/RS, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, DJe 10/9/2013).

“Esses dados bem evidenciam que os crimes patrimoniais “de rua”, de que são exemplos mais corriqueiros o furto e o estelionato, têm recebido tratamento jurídico completamente diverso e bem mais rigoroso se comparado ao que se dispensa aos crimes contra a ordem tributária e, em particular, ao crime de descaminho, não apenas, como visto acima, em relação aos critérios para o reconhecimento da insignificância penal, como também quanto ao valor máximo a permitir a incidência do princípio bagatelar”, acresentou o ministro em seu voto.

Abaixo, a íntegra da ementa do voto do ministro Schietti e a íntegra de seu voto.Download aqui.

RECURSO ESPECIAL No 1.393.317 – PR (2013/0257645-1) EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. V ALOR DO TRIBUTO ILUDIDO. PARÂMETRO DE R$ 10.000,00. ELEVAÇÃO DO TETO, POR MEIO DE PORTARIA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA, PARA R$ 20.000,00. INSTRUMENTO NORMATIVO INDEVIDO. FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL. INAPLICABILIDADE. LEI PENAL MAIS BENIGNA. NÃO INCIDÊNCIA. RECURSO PROVIDO.

1. Soa imponderável, contrária à razão e avessa ao senso comum tese jurídica que, apoiada em mera opção de política administrativo- fiscal, movida por interesses estatais conectados à conveniência, à economicidade e à eficiência administrativas, acaba por subordinar o exercício da jurisdição penal à iniciativa da autoridade fazendária.Sobrelevam, assim, as conveniências administrativo-fiscais do Procurador da Fazenda Nacional, que, ao promover o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00, impõe, mercê da elástica interpretação dada pela jurisprudência dos tribunais superiores, o que a Polícia deve investigar, o que o Ministério Público deve acusar e, o que é mais grave, o que – e como – o Judiciário deve julgar.

2. Semelhante esforço interpretativo, a par de materializar, entre os jurisdicionados,tratamento penal desigual e desproporcional, se considerada a jurisprudência usualmente aplicável aos autores de crimes contra o patrimônio, consubstancia, na prática,sistemática impunidade de autores de crimes graves, decorrentes de burla ao pagamento de tributos devidos em virtude de importação clandestina de mercadorias, amiúde associada a outras ilicitudes graves (como corrupção, ativa e passiva, e prevaricação) e que importam em considerável prejuízo ao erário e, indiretamente, à coletividade.

3. Sem embargo, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial Representativo de Controvérsia n. 1.112.748/TO, rendeu-se ao entendimento firmado no Supremo Tribunal Federal no sentido de que incide o princípio da insignificância no crime de descaminho quando o valor dos tributos iludidos não ultrapassar o montante de R$ 10.000,00, de acordo com o disposto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002. Ressalva pessoal do relator.

4. A partir da Lei n. 10.522/2002, o Ministro da Fazenda não tem mais autorização para, por meio de simples portaria, alterar o valor definido como teto para o arquivamento de execução fiscal sem baixa na distribuição. E a Portaria MF n. 75/2012, que fixa, para aquele fim, o novo valor de R$ 20.000,00 – o qual acentua ainda mais a absurdidade da incidência do princípio da insignificância penal, mormente se considerados os critérios usualmente invocados pela jurisprudência do STF para regular hipóteses de crimes contra o patrimônio – não retroage para alcançar delitos de descaminho praticados em data anterior à vigência da referida portaria, porquanto não é esta equiparada a lei penal, em sentido estrito, que pudesse, sob tal natureza, reclamar a retroatividade benéfica, conforme disposto no art. 2o, parágrafo único, do CPP.

5. Recurso especial provido, para, configurada a contrariedade do acórdão impugnado aos arts. 2o, parágrafo único, e 334, ambos do Código Penal, cassar o acórdão e a sentença absolutória prolatados na origem e, por conseguinte, determinar o prosseguimento da ação penal movida contra o recorrido.

http://tributoedireito.blogspot.com.br/2014/11/fazenda-nao-pode-dizer-o-que-e-crime.html

Nenhum comentário: