A ilegalidade da majoração da taxa Siscomex
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará, no dia 5/9/2017, tese sobre a legalidade da majoração da Taxa de Utilização do Sistema Integrado de Comércio Exterior (“Siscomex”), promovida pela Portaria MF 257/11. Está pautado para julgamento da Segunda Turma, sob a relatoria do Ministro Herman Benjamin, o Recurso Especial nº 1.659.074/SC, interposto pelo Fisco contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que reconheceu o direito do contribuinte de recolher a exação sem as alterações de valores previstas na Portaria.
O julgamento representa uma nova oportunidade para o STJ examinar a legalidade da cobrança majorada da Taxa “Siscomex” sob a perspectiva da afronta à estrita legalidade estampada no artigo 97, §2º do CTN. Em julgamento anterior[1], a Corte não enfrentou o mérito da discussão a respeito da exação por entender que o recurso comportava matéria eminentemente constitucional (artigo 150, I, CF) e, portanto, deveria ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao contrário do julgamento anterior, a matéria devolvida à Corte no recurso especial prestes a ser julgado foi embasada principalmente em normas infraconstitucionais (artigo 97, §2º do CTN e o §2º, art. 3º da Lei nº 9.716/98). Além disso, no acórdão de segunda instância foi enfrentado um novo elemento trazido à análise do Judiciário: o confronto entre a receita da taxa Siscomex e o custo dispendido pelo Estado para a manutenção do respectivo sistema.
A despeito dos diversos questionamentos que a majoração da taxa pela Portaria MF 257/11 acarreta sob a ótica da constitucionalidade, tais como a violação aos princípios da legalidade (art. 150, I, CF), do não-confisco (art. 150, IV, CF) e da proporcionalidade (art. 5º, LIV, CF), neste artigo manteremos o foco das discussões sob a perspectiva exclusivamente infraconstitucional que deve ser apreciada pelo STJ.
O §2º, art. 97, do CTN[2] traz à legislação infraconstitucional um desdobramento do princípio da legalidade (art. 150, I), traduzindo a ideia de que nenhum tributo poderá ser instituído ou majorado senão por meio de lei, como reconhecido de maneira consolidada pelo STJ com a edição da Súmula nº 160: é defeso, ao Município, atualizar o IPTU, mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária.
Assim, entendemos plenamente possível que o STJ enfrente a legalidade da majoração da taxa Siscomex promovida pela portaria ministerial sob a perspectiva da afronta à estrita legalidade positivada no artigo 97, §2º do CTN.
Estabelecida essa premissa, vamos analisar os pontos de debate quanto à ilegalidade da majoração promovida pela Portaria 257/11.
A Taxa Siscomex foi instituída pelo artigo 3º da Lei nº 9.716/98 para custear a manutenção e o desenvolvimento do sistema informatizado de comércio exterior, prevendo originalmente a cobrança de R$30,00 por Declaração de Importação e R$10,00 para cada adição de mercadorias à Declaração de Importação.
Por sua vez, o §2º do mesmo dispositivo outorgou ao Ministro de Estado da Fazenda a competência para reajustar, anualmente, os valores definidos para a cobrança da Taxa, desde que adstrito à variação dos custos de operação e dos investimentos no Siscomex.
Sob o pretexto de exercer a autorização dada pela Lei nº 9.716/98, foi editada, em maio de 2011, a Portaria nº 257/11, que majorou os valores da Taxa para R$185,00 por Declaração de Importação e R$29,50 para cada adição de mercadorias à Declaração.
A proximidade de uma possível decisão de mérito pelo STJ nos coloca novamente em reflexão sobre o tema, trazendo à análise a legalidade da majoração da Taxa sob a ótica da necessária equivalência entre o valor da exação e o custo da prestação estatal.
De acordo com o arquétipo constitucional, o pressuposto para cobrança de taxas está ligado necessariamente à vinculação entre o exercício de uma atividade estatal e o contribuinte que lhe deu causa. Em razão dessa natureza sinalagmática e contraprestacional, o princípio da retributividade, inscrito nos artigos 77 e seguintes do CTN, orienta que a base de cálculo desse tributo, ou seu valor unitário, como no caso da taxa Siscomex, seja equivalente ao custo incorrido pela Administração com o serviço ou ato de polícia correspondente.
Como a justificativa para cobrança da Taxa Siscomex é a utilização do sistema integrado de comércio exterior, sua cobrança deverá refletir o custo do Estado para manutenção e desenvolvimento do sistema. Assim, o custo da atividade estatal ganha relevância para a aferição da legalidade do tributo.
A partir dos dados inicialmente fornecidos pela Procuradoria da Fazenda Nacional relativamente aos anos de 1999 a 2011[3] e, ainda, em informações complementares disponibilizadas pela Receita Federal quanto aos períodos seguintes[4], é possível constatar que em 2011, ano da edição da Portaria/MF nº 257/11, a receita decorrente da taxa Siscomex foi 3,73 vezes superior à quantia empregada na manutenção e desenvolvimento do sistema, aclarando o profundo descompasso entre a majoração de 616% sobre o valor inicialmente instituído pela Lei 9.716/98 e os gastos incorridos em razão do sistema.
A conta, de longe, não fecha: embora a Receita Federal tenha informado o valor de arrecadação até 2016, os custos do sistema somente foram fornecidos até o exercício de 2011. Mesmo assim, a manutenção da dissonância entre o custo e a arrecadação do Siscomex poderia ser refletido para os períodos seguintes[5] levando-se em consideração a média da variação histórica dos gastos, de 5,05%:
Variação do custo | Ano | Custo Siscomex | Arrecadação |
1999 | R$ 57.165.517,02 | R$ 58.418.344,11 | |
-49,24% | 2000 | R$ 29.017.101,92 | R$ 66.079.620,42 |
172,64% | 2001 | R$ 79.113.427,52 | R$ 66.478.104,37 |
-15,95% | 2002 | R$ 66.498.135,11 | R$ 61.787.586,63 |
-80,47% | 2003 | R$ 12.986.254,61 | R$ 61.934.310,72 |
666,13% | 2004 | R$ 99.491.084,87 | R$ 72.661.457,17 |
-26,20% | 2005 | R$ 73.426.743,00 | R$ 78.439.390,03 |
29,38% | 2006 | R$ 95.000.000,00 | R$ 87.655.721,61 |
-0,84% | 2007 | R$ 94.200.000,00 | R$ 102.002.540,09 |
32,43% | 2008 | R$ 124.747.903,00 | R$ 118.438.573,97 |
24,98% | 2009 | R$ 155.909.878,00 | R$ 103.238.819,62 |
-15,76% | 2010 | R$ 131.331.646,82 | R$ 130.753.316,83 |
-9,65% | 2011 | R$ 118.664.000,00 | R$ 443.449.082,05 |
5,05% | 2012 | R$ 124.656.532,00 | R$ 644.826.584,10 |
5,05% | 2013 | R$ 130.951.686,87 | R$ 680.953.806,10 |
5,05% | 2014 | R$ 137.564.747,05 | R$ 667.692.073,54 |
5,05% | 2015 | R$ 144.511.766,78 | R$ 598.002.258,06 |
5,05% | 2016 | R$ 151.809.611,00 | R$ 553.616.139,08 |
Nessa linha, é possível verificar que as alterações nos valores unitários da Taxa, promovidas pela Portaria/MF nº 257/11, não se ativeram à recomposição da variação dos custos e investimentos realizados no “Siscomex”, tampouco tiveram como objetivo a atualização do valor monetário do tributo.
Se aplicássemos, por exemplo, o INPC[6] entre a data em que a Taxa passou a ser exigível (janeiro de 1999) e a data em que foi publicada a Portaria/MF nº 257/11 (abril de 2011), seu aumento deveria ter sido de, no máximo, 131,6 %.
Por essas razões, diferentemente do que tenta emplacar o Fisco, não há que se falar em adequação da Portaria nº 257/11 ao § 2º, art. 97 do CTN, pois a autorização contida no dispositivo destina-se estritamente à recomposição do valor monetário, ao que claramente não corresponde a majoração de 616% realizada pelo ato ministerial.
Essa consideração nos remete novamente ao caso da atualização do IPTU por decreto, ocasião em que o STJ afirmou que a atualização de tributo em valor superior àquele que decorreria da simples correção de seu valor monetário não encontra […] qualquer suporte no citado artigo 97, § 2º do CTN que só autoriza “a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo” e não a majoração de seu valor real.[7]
Por via de consequência, o irrazoável descompasso entre a arrecadação e o custo do sistema (que, só em 2011, atingiu uma proporção de 373%) também afasta o ato normativo dos limites da delegação prevista no artigo 3º, §2º da Lei nº 9.716/98, nos termos do qual o ajuste do valor da taxa deveria ser adstrito à variação dos custos de operação e dos investimentos no Siscomex.
Ademais, nada obstante o REsp nº 1.659.074/SC não tramitar sob o rito dos recursos repetitivos e, portanto, não configurar precedente obrigatório nos termos do artigo 932, inciso IV, “b, do Código Processo Civil, entendemos que a decisão a ser proferida no julgamento tem relevância, pois poderá representar o primeiro posicionamento do STJ acerca da discussão de mérito da Taxa “Siscomex”. Assim, espera-se que o STJ mantenha coerência com a Súmula 160, cujas razões de decidir são aplicáveis ao caso pautado para a próxima terça-feira, e reconheça a incompatibilidade entre a majoração da taxa pela Portaria nº 257/11 e os artigos 97, §2º e 77 e seguintes do CTN.
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[1]STJ. REsp nº 1.507.332/PR. Segunda Turma. Relator: Ministro Herman Benjamin. J. 3/3/2015. DJe 31/3/2015.
[2] Não nos dedicaremos, neste artigo, a criticar a duvidosa constitucionalidade desse dispositivo em um contexto econômico de inflação controlada.
[3] Dados fornecidos pela Procuradoria da Fazenda Nacional no processo nº 5010730-18.2015.4.04.7208, em trâmite prante a 2ª Vara Federal de Itajaí- RJ.
[4] Dados fornecidos em resposta ao pedido de acesso à informação que formulamos perante o “e-SIC”, Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão. Pedido de acesso à informação protocolo nº 16.853.000.348.201.752.
[5] Com exceção de situações excepcionais que levem ao aumento excessivo dos custos do sistema ou à queda significativa da arrecadação.
[6] Índice Nacional de Preços ao Consumidor. Ex: R$30,00 * 2,2995.Valor atualizado (VA) = R$68,99. Valor percentual correspondente:131,6065800%. (https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?method=corrigirPorIndice).
[7] REsp 5.395/PA, Rel. Ministro Garcia Vieira, Primeira Turma, j. 22/4/1991, DJ 20/5/1991, p. 6508.
Breno Ferreira Martins Vasconcelos - Pesquisador e Professor da FGV Direito SP. Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Advogado da área tributária do escritório Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.
João Victor Emile Andrade Safieh - Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Advogado da área tributária do escritório Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.
Letícia Marchioni Sequeira - Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Estagiária da área tributária do escritório Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.
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