ICMS interestadual entre estabelecimentos do mesmo contribuinte
Sempre me pergunto quem se encarrega de desencavar antigos debates, sob nova roupagem, com o escancarado intuito de assombrar os contribuintes. Um desses casos é o do ICMS entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.
É de todos conhecido que o ICMS incide sobre operações relativas à circulação das mercadorias (e alguns serviços). E que tal operação de circulação reflete um conceito jurídico (que, para este fim, engloba o econômico), e não um deslocamento meramente físico das mercadorias. Assim, grosso modo, se houver uma operação que acarrete a transferência da propriedade de uma mercadoria, haverá incidência de ICMS, mesmo que ela não se desloque fisicamente de um lugar para outro — vê-se tal hipótese na compra e venda de estoques, por exemplo.
Dentro desta moldura, consideremos duas hipóteses. Haverá incidência de ICMS quando o mesmo contribuinte remeter mercadorias suas, de um para outro de seus estabelecimentos, dentro de um mesmo Estado? Tal transferência pode decorrer apenas de reposição de estoques, ou de alguma movimentação empresarial estratégica entre seus estabelecimentos de um ponto a outro do território estadual — pode estar chovendo muito no oeste do Estado, e o comerciante deslocar todo seu estoque de capas de chuva e guarda-chuvas para seu estabelecimento naquela região, trazendo para o litoral, onde faz sol, seus estoques de guarda-sóis. A resposta é logicamente negativa, ou seja, não há incidência de ICMS nesta hipótese, pois não se está diante de uma operação de circulação jurídica ou econômica, uma vez que não há compra e venda, ou algum negócio jurídico assemelhado, que dê amparo à incidência do referido imposto.
Outra hipótese é a que implica na transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, só que situados em diferentes Estados. A diferença aqui diz respeito ao sujeito ativo da obrigação tributária, pois não será pago ICMS ao Estado A quando da transferência para o Estado B. Podem ser usados os mesmos exemplos descritos no parágrafo anterior, apenas localizando cada estabelecimento em um diferente Estado. O foco, neste passo, é: poderá o Estado A cobrar ICMS por esta transferência interestadual de mercadorias entre os estabelecimentos do mesmo contribuinte? Entende-se também que não há incidência de ICMS nesta hipótese, que se insere na mesma moldura acima exposta, pois, tanto naquele caso, como neste, não se há de falar em operação de circulação — o que há é mero deslocamento físico da mercadoria.
Tudo que acima foi exposto está em consonância com a Súmula 166 do STJ, assim redigida: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. Trata-se de uma Súmula editada em 1996, e que vem sendo pacificamente confirmada pelo STJ e seguida pelo STF até os dias atuais. Observe-se que o texto não faz distinção entre ICMS interno e ICMS interestadual, isto é, não haverá incidência desse imposto, estejam os estabelecimentos no mesmo ou em Estados diversos. É imprescindível, apenas, que ambos sejam do mesmo contribuinte.
Todavia, existe uma assombração na legislação do ICMS (Lei Complementar 87/96), que rege esta matéria, ao estabelecer: “considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento (...) da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular” (art. 12, I). A mim parece claro que a referida norma trata do aspecto temporal da incidência, e não do aspecto material. O acento tônico da frase está na expressão “no momento”, isto é, o instante em que o ICMS deverá ser cobrado, e não em qual situação ele deverá ser cobrado, o que é tratado no art. 2º da referida norma. E bem sei que os contadores, profissionais dotados de um espírito prático nem sempre presente entre os advogados, resolveram esse problema de uma forma muito fácil: toda vez que uma empresa faz a transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular, eles fazem incidir o imposto nas duas operações, escriturando-o na saída e na entrada da mercadoria em cada estabelecimento, usando a mesma base de cálculo — o que resulta em uma operação de soma zero, inócua para fins de pagamento desse tributo. Trata-se de uma solução prática, que gera resultados nas operações internas, pois o sujeito ativo da operação é o mesmo. Porém, o problema é mais complexo do que isso no âmbito interestadual, envolvendo necessariamente uma análise de federalismo fiscal.
De fato, pode-se imaginar a seguinte operação visando deslocar o sujeito ativo da operação: determinada empresa adquire (ou fabrica) mercadorias no Estado A, e as transfere sem a incidência do ICMS para o Estado B, no qual criou um centro de distribuição, e, de lá, vende para os Estados X, Y e Z, com incidência desse tributo, pois haverá operações de circulação de mercadorias. Neste exemplo, houve o deslocamento do sujeito ativo do ICMS, do Estado A, que nada receberá, para o Estado B, para o qual será pago o tributo. Observe-se que, pela ótica do contribuinte, não haverá diferença entre pagar para o Estado A ou B — ele terá que pagar. Poderá haver diferença caso o valor do ICMS cobrado seja distinto entre os dois Estados — o que nos leva, novamente, ao tema da guerra fiscal. Suponhamos que, na saída das mercadorias, o Estado A cobre 12%, e que o Estado B cobre apenas 7%, torna-se economicamente vantajoso transferir o início da incidência do ICMS de um para outro Estado, o que pode ser feito transferindo as mercadorias de A para B, e vendendo a partir de B.
Exposto este aspecto do problema, outra questão assoma: Pode o Estado A cobrar ICMS na operação de transferência interestadual de mercadorias para o Estado B? A resposta permanece negativa, por várias razões.
Em primeiro lugar, constata-se que o ordenamento jurídico não ampara a pretensão arrecadatória dos Estados de origem, pois tais movimentações físicas não se caracterizam como operações de circulação (jurídica ou econômica) de mercadorias. Logo, não se constata o aspecto material da hipótese de incidência constitucionalmente desenhada.
Segundo, caso ultrapassada a barreira legal acima apontada, a suposta conduta irregular será do contribuinte ou dos Estados que se envolvem na guerra fiscal? Por outras palavras: estará errado o contribuinte em organizar seus negócios da forma mais econômica, ou estarão errados os Estados? De minha parte, entendo estar errado o desenho do ICMS na Constituição de 1988, pois deixou nas mãos dos Estados um tributo que possui nítida vocação nacional — nenhum país atribui aos entes subnacionais esse modelo de tributação sobre valor acrescido (ou tributos semelhantes, como o ICMS). Esta é, no fundo, uma das causas mais importantes da fratricida guerra fiscal atual. As empresas acabam sendo meras contendoras em um sistema perverso, pois, se não buscarem reduzir seus custos, morrerão na disputa do mercado defronte de seus concorrentes, que se aproveitarão das vantagens oferecidas e, com custos menores, terão preços menores e o fantasma da recuperação judicial aparecerá no horizonte — trata-se do velho dilema do prisioneiro, da teoria dos jogos, aplicado às relações empresariais, envolvendo aspectos financeiros.
Em terceiro lugar, e apenas se ultrapassadas as considerações anteriores, é necessário que os Estados comprovem que as empresas agem com o intuito de economizar tributos — o que não é, em si, algo errado. Ademais, não basta supor, é necessário comprovar. Conheço um caso em que o Estado cobrou ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, mesmo sabendo que o destino de todas as mercadorias seria a exportação através das instalações portuárias localizadas no Estado vizinho. Um exemplo: imagine-se o Estado de Mato Grosso cobrando ICMS sobre a transferência de soja para o Estado do Paraná, a qual será exportada pelo porto de Paranaguá. Será uma tributação em cascata, pois a empresa exportadora não se aproveitará desses créditos, que se transformarão em custos. Ou seja, o que era para ser um crédito (uma vantagem) se transforma em um custo (uma despesa). Seguramente os Estados não tem esse poder — é necessário fazer prova, e não apenas ter suposições. Tributar sem proceder desta forma caracteriza-se como abuso de direito.
Em quarto lugar, pretende-se resolver um problema de rateio federativo de competências, próprio do direito financeiro, ramo que estuda o federalismo fiscal, com medidas de direito tributário, que acarretam maior incidência sobre os contribuintes. Aqui há verdadeira miopia normativa na solução adotada, pois, se não há nenhuma cogitação de incidência de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos dentro de um mesmo Estado, por qual motivo essa perspectiva muda em caso de idênticas operações interestaduais? Apenas porque o sujeito ativo mudou? Não é suficiente para alterar o aspecto material da hipótese de incidência.
Inegavelmente o problema existe, mas não será através do uso da força tributária estadual contra os contribuintes que isso se resolverá, mas no legislativo, a míngua de normas que atualmente amparem a pretensão fiscal dos Estados.
Nada justifica a mudança da Súmula 166 do STJ, que deve permanecer íntegra, afastando a incidência do ICMS tanto nas operações internas, quanto nas interestaduais, em caso de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.
Trata-se de um tema apaixonante, pois envolve tanto o direito tributário, quanto o financeiro, e que tive a felicidade de revisitar ao orientar a excelente monografia de Francisco Sávio Mileo Filho, apresentada junto ao Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), instituição atualmente presidida por Ricardo Mariz de Oliveira, e fundada por Ruy Barbosa Nogueira, que foi Professor Titular da USP de Direito Financeiro e, posteriormente, de Direito Tributário. O texto completo, com vasta pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, pode ser encontrado na Revista do IBDT, Direito Tributário Atual (vol. 37, págs. 200-220, com o título de O ICMS e a Transferência de Mercadorias envolvendo estabelecimentos do mesmo contribuinte http://ibdt.org. br/RDTA/37/471/).
Aliás, na próxima quinta-feira, dia 21/9, o IBDT fará a 500ª reunião da Mesa de Debates, já nas instalações recentemente reformadas e entregues à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, compostas por um novo e amplo auditório, com duas outras salas para reuniões e debates, renovando a velha, pois quase bicentenária, porém sempre nova academia, o que é motivo de grande alegria para todos os que estudam juridicamente temas envolvendo as finanças públicas em nosso país. Congratulo-me com todos.
Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.
Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2017, 9h13
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