Imposto sobre bens localizados no exterior
Fonte: Valor Econômico
Por Marcelo de Azevedo Granato
Há uma crise localizada, uma fenda, no arcabouço jurídico-tributário nacional. Não é o estouro da represa, mas um pequeno buraco, que faz vazar água – e qualquer vazamento nestes tempos de secura é terrível. Vários Estados estão cobrando o Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) nos casos de bem localizado, de cujus residente/domiciliado ou inventário processado no exterior sob a alegação de que, mesmo sem o preenchimento de requisito constitucional expresso, seriam competentes para tanto. O tema é complexo, mas são muitos (para manter a ilustração: transbordam) os argumentos contra a exigência do imposto nesses casos.
O art. 155, parágrafo 1º, III, b, da Constituição (CF) estabelece que o ITCMD-causa mortis “terá competência para sua instituição regulada por lei complementar [...] se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior”. Os Estados argumentam que, apesar da clareza com que a CF condiciona a exigência do imposto à edição de lei complementar que regule a “competência para sua instituição”, a ausência dessa lei não impediria sua cobrança. A razão seria o art. 24, §3º, da CF: “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”.
Assim, na ausência da lei complementar de que fala o art. 155, §1º, III, b, e tratando-se de matéria sobre a qual os Estados têm competência para legislar, eles poderiam disciplinar a incidência do ITCMD-causa mortis nos casos de bem localizado, de cujus residente/domiciliado ou inventário processado no exterior.
A competência para cobrança do ITCMD-causa mortis não é uma ‘peculiaridade’ de um Estado
Ocorre que esse requisito da lei complementar traz consigo o propósito de evitar que todos os Estados relacionados com as hipóteses ‘extraterritorias’ do art. 155, §1º, III, b (pela localização, em seu território, do bem, do herdeiro etc.) cobrem o imposto concomitantemente. Emerge, aqui, a função reguladora da lei complementar: será ela a transformar uma competência reivindicável por mais de um Estado numa competência exclusiva de um deles, conforme o específico vínculo desse Estado com o bem, de cujus ou inventário no exterior.
Assim, conforme o art. 155, §1º, III, b, da CF, a relação entre a transmissão causa mortis e o exterior impõe, para a tributação interna daquela transmissão, uma discriminação normativa, de abrangência nacional, da competência dos Estados. Essa é uma atribuição exclusiva da lei complementar, conforme o art. 146, I, da CF.
Como ainda não foi editada a lei complementar a que se refere o art. 155, não podem os Estados disciplinar a incidência do ITCMD-causa mortis nas hipóteses em causa. E como somente poderão fazê-lo após a edição daquela lei, a “lei federal sobre normas gerais” do art. 24, §3º, da CF, em cuja ausência “os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”, não pode ser entendida como (substituta) a lei complementar de que fala o art. 155. Senão a Constituição estaria veiculando disposições incompatíveis (proibindo e autorizando a atividade legislativa plena dos Estados na ausência da lei complementar).
Mesmo que não fosse assim, é o próprio conteúdo do art. 24, §3º, que mostra a impossibilidade da cobrança autônoma do imposto por cada Estado. O que o § 3º diz é que, inerte a União no estabelecimento de normas gerais, podem os Estados exercer “a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”. Porém, a inércia aqui não é da União, mas da Federação, da qual os Estados também fazem parte. Ademais, essa competência dos Estados somente pode ser exercida “para atender a suas peculiaridades”, no que se volta a situações de caráter local; inexistindo lei federal sobre normas gerais, o legislador estadual está autorizado a criar normas gerais naquilo que interesse a situações particulares, i.e. suas e não de todos os Estados. Tais normas visam possibilitar a subsequente edição de normas particulares pelo Estado, “para atender a suas peculiaridades”. Claramente, a competência para cobrança do ITCMD-causa mortis não é uma “peculiaridade” de um Estado.
Por esses e outros motivos, é clara a falta de amparo constitucional para a exigência do ITCMD-causa mortis pelos Estados e pelo Distrito Federal nos casos de bem localizado, de cujus residente/domiciliado ou inventário processado no exterior.
*Marcelo de Azevedo Granato é doutor em direito pelas Universidades de São Paulo e Turim, juiz do TIT/SP e integrante de BGR Advogados
http://tributoedireito.blogspot.com.br/2014/09/imposto-sobre-bens-localizados-no.html
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