LEGISLAÇÃO

sábado, 24 de janeiro de 2015

Contrato de câmbio para exportação na falência e na recuperação de empresa


Contrato de câmbio para exportação na falência e na recuperação de empresa


Lucas Manzoli de Almeida


Há entendimento jurisprudencial no sentido de que o contrato cancelado ou baixado não seria mais considerado contrato de câmbio para exportação, e sim mero contrato de mútuo. Estudam-se as consequências disso no caso de falência ou recuperação do exportador.

O contrato de câmbio para exportação é celebrado para custear a produção que será exportada, no caso da mercadoria a embarcar, denominado ACC ou financiar a comercialização do produto já embarcado, o ACE.

O contrato de câmbio para exportação deve ser registrado perante o Banco Central, em razão da entrada de divisas estrangeiras em território nacional.

Como forma de incentivo ao mercado financeiro nacional, mais especificamente às exportações, a LRF faz expressa menção à exclusão do contrato de câmbio para exportação aos efeitos desta lei, nos termos de seu art. 86, II[1] c.c. art. 75, §§ 3º e 4º[2], da LMC.

Tal exclusão tem fundamento na espécie do contrato, que segue modelo do BACEN, com imposição de juros abaixo do mercado (estabelecidos para outros contratos) e a natureza de não ser compreendido como empréstimo, mas sim como divisas da instituição financeira em posse do exportador.

De forma a viabilizar a celebração de tal instrumento e prover incentivo às exportações, as instituições financeiras têm o benefício do dispositivo supramencionado, podendo executar tais títulos por via extraconcursal em caso de falência ou recuperação judicial do exportador.

Uma empresa que encontra dificuldades para satisfazer suas obrigações pode, preventivamente, requerer perante o Foro do Juízo da comarca de sua matriz a recuperação judicial, que consiste na reestruturação das dívidas em juízo, respeitando uma ordem de pagamento de acordo com a natureza do crédito e a execução do plano de recuperação judicial, que consiste em um documento contendo diretrizes, ordem e execução do pagamento aos credores habilitados.

Após o recebimento do pedido, o Juízo ordenará a suspensão de todas as ações e execução pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias.

O devedor deverá apresentar ao juízo da Recuperação Judicial uma lista nominal de seus credores, divididos em classes, de acordo com a natureza do crédito.

Os créditos oriundos dos contratos de ACC ou ACE, por expressa previsão legal e ao contrário dos demais créditos, não precisam ser habilitados na recuperação judicial, podendo ser executados em ação autônoma, perante juízo diverso da recuperação judicial.

Situação semelhante ocorre em caso de falência do devedor, em que, por previsão da LRF, tal crédito é submetido ao pedido de restituição, antecipadamente à repartição entre todos os demais credores do numerário advindo dos ativos da massa falida, tendo, assim, benefício sobre os demais credores concursais.

Assim, os credores de ACC e ACE possuindo benefício em detrimento dos demais credores, estes concursais, muitas vezes têm a oportunidade de executar os ativos da recuperanda antes do cumprimento do plano, no caso da recuperação judicial, ou liquidar os ativos da massa falida, na falência, por possuírem créditos que são excluídos do concurso de credores.

A principal e mais grave crítica relativa à referida exclusão consiste em que a execução extraconcursal inviabilizaria o sucesso dos procedimentos da LRF.

A instituição financeira detentora de tal crédito encontra-se sempre em situação vantajosa em detrimento dos demais créditos, vale lembrar, compostos por créditos fiscais e trabalhistas, dentre outros.

A discussão tem lugar nos julgados dos Tribunais brasileiros, apesar de haver súmula do STJ no sentido da legalidade da norma, devendo-se, assim, tais créditos serem excluídos dos efeitos dos procedimentos falimentares e recuperações de empresas. [3]

Há entendimentos sobre a matéria que aplicam o direito em função da recuperação da empresa e da ideal divisão dos ativos da massa falida, aplicando o Juízo Universal da Recuperação Judicial, ou seja, sujeitando qualquer ação ao Juízo da Recuperação, inclusive os casos que por expressa previsão legal não devem ser sujeitados a tais efeitos.[4]

Mais a fundo, insurgem questões relativas ao procedimento da execução extraconcursal do contrato de câmbio. Com a não-restituição das divisas pelo exportador à instituição financeira, deve-se cancelar o título de ACC ou ACE ou requerer sua baixa perante o BACEN, como previsto no RMCCI.

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Referida operação tem fundamento na expectativa econômica com a entrada de divisas em território nacional e, por sua frustração, são devidos ao BACEN os encargos financeiros instituídos no art. 12, I,[5] da Lei nº 7.738/89.

Ocorre que os referidos encargos são levados a débito diretamente em nome da instituição financeira, devendo esta reclamá-las ao exportador, que deu causa à inadimplência do contrato.

Há entendimento jurisprudencial no sentido de que o contrato cancelado ou baixado não seria mais considerado contrato de câmbio para exportação, e sim mero contrato de mútuo, inaplicável, desta forma, o benefício acima mencionado, no caso de falência ou recuperação do exportador.

Por todo o exposto, imprescindível é a realização da pesquisa proposta em razão da relevância do tema, a novidade da lei e sua controvérsia no sistema jurídico-econômico nacional.
CAPÍTULO 1: CONTRATO DE CÂMBIO PARA EXPORTAÇÃO

Como dispõe a CF em seu Art. 21, VIII, incumbe à União "administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada".

O contrato de câmbio para exportação é a ferramenta utilizada para possibilitar ao exportador o financiamento de sua produção que será remetida ao exterior. Trata-se, como será exposto adiante, de uma compra e venda realizada a termo, sujeitando a evento futuro e certo, o qual não é outro senão, no caso do contrato de câmbio para exportação, o recebimento da moeda estrangeira pela instituição financeira contra a entrega de mercancias ao importador.

Na esteira do contrato de câmbio para exportação, note-se que, conquanto o contrato se aperfeiçoe a partir do consenso (ou seja, são exigíveis as prestações das partes), a execução é diferida até o momento do recebimento da moeda estrangeira pela instituição financeira intermediadora do contrato.

Por disposição legal, o contrato de câmbio é imprescindível para a realização de operações cambiais. Realiza-se, assim, na exportação, entre o exportador, vendedor de moeda estrangeira, e uma instituição financeira autorizada a operar em câmbio pelo BACEN compradora de moeda estrangeira. Ao revés, a importação é realizada entre o importador, comprador de moeda estrangeira e a citada instituição, agora vendedora de moeda estrangeira.

A Lei no 4.131/62, por sua vez, estipula que as operações cambiais somente poderão se realizar através de instituição financeira autorizada para tanto. Nessa toada, a Lei no 4.595/64 atribui ao Conselho Monetário Nacional, por meio do BACEN o controle cambial.


A principal regulação (leiam-se normas administrativas) do contrato de câmbio encontra-se no RMCCI do BACEN, havendo previsão de ser permitida, no contrato de câmbio para exportação, a antecipação total ou parcial de moeda nacional ao exportador, servindo para financiar a produção ou comercialização da mercadoria a ser exportada.

O contrato de câmbio de exportação respeita modelo do BACEN, com cláusulas fixas (denominadas "BC") e cláusulas sob responsabilidade das instituições financeiras (denominadas "IF"), podendo ser pactuado com adiantamento de valores pela instituição financeira ao exportador, total ou parcial, quando da celebração do contrato anteriormente ao embarque da mercadoria, ou adiantado, da mesma forma, posteriormente ao embarque do produto.

1.1. ADIANTAMENTO DE CONTRATO DE CÂMBIO

O ACC é a operação em que são adiantados fundos em moeda nacional (Reais) ao exportador anteriormente ao embarque da mercadoria, seja parcial ou integralmente, como forma de financiamento à produção.

Nesta linha, o ACC pode ser celebrado até 360 dias anteriormente à data do embarque da mercadoria, aprazada com o comprador estrangeiro. E, desta forma, a instituição financeira antecipa os recebíveis do exterior ao exportador, possibilitando que o bem objeto do contrato seja produzido.[6]

Sendo a quantia antecipada em até 360 dias antes do embarque da mercadoria,[7] é conferido ao exportador um incentivo em vista dos juros abaixo da média do mercado, com natureza de financiamento, ou seja, tendo como objetivo a efetivação de uma atividade negocial,[8] com a ressalva de que tal benesse favorece o produtor de insumos mais próximo ao exportador final.[9]

Com efeito, não é admitida a prorrogação do prazo do embarque da mercadoria ao exterior que, não cumprida, constitui inadimplemento do contrato de câmbio.
1.2. ADIANTAMENTO SOBRE CAMBIAIS ENTREGUES

Por sua vez, o ACE é contratado posteriormente ao embarque da mercadoria ao exterior, sendo adiantados os recebíveis ao exportador total ou parcialmente, "realizado no intuito de financiar a comercialização dos bens exportados"[11].

Assim, o ACE consiste em financiamento amparado em uma exportação já realizada, com previsão de liquidação no máximo até 390 dias após a data do embarque.

A rigor, o ACC pode ser transformado em ACE, findos os 360 dias e no caso de embarcada a mercadoria, o que confere ao exportador nova contagem de prazo, isto é, para liquidação até o último dia útil do 12º mês subseqüente ao do embarque da mercadoria ou da prestação de serviço, nos termos do item 1, alíneas "a" e "b" do Título 1, Capítulo 11, Seção 2, do RMCCI.
1.3. ENCARGO FINANCEIRO

O inadimplemento do contrato de câmbio se dá com o descumprimento dos prazos estabelecidos em suas diferentes modalidades, seja pela não exportação do produto ou por ultrapassar-se o prazo da liquidação do contrato.

No caso do ACC, a prorrogação do prazo para entrega dos documentos não pode ultrapassar 360 dias da data da contratação do câmbio, já quanto à mercadoria embarcada, o ACE, o prazo de liquidação pode ser prorrogado por até 360 dias, contado do embarque. Findos os 360 dias sem o embarque das mercadorias, são devidos tão-somente os valores arrolados abaixo e, como se verá, são os mesmos em caso de cancelamento ou baixa.

O contrato de câmbio pode ser cancelado, por acordo entre as partes, sem mercadoria embarcada ou sem que tenha ocorrido a prestação do serviço,[12] incidindo o encargo financeiro disposto no Art. 12, I, da Lei nº 7.738/89.

O fechamento do contrato de câmbio se dá com a negociação das condições da compra e venda da moeda estrangeira (p. ex., remuneração, prêmio, prazo) entre o exportador e a instituição financeira autorizada pelo BACEN a operar em câmbio.

A título de nota, a lei instituidora do encargo financeiro (Lei no 7.738/89) cuidou de regulamentar a Lei no 7.730/89, tendo ambas visível objetivo de proteção do Sistema Financeiro Nacional, sobretudo visando a manutenção de recursos dentro do território nacional a partir do fomento à exportação, em consonância com a política de higidez econômica do período, a qual, conforme é historicamente conhecido, não obteve o sucesso almejado.

Porquanto inegável a finalidade estratégica da incidência do encargo financeiro em ACCs cancelados, baixados ou realizados a destempo (configurando ACEs em verdade), a justificativa para sua cobrança reside na manutenção das reservas cambiais do país, pois: a uma, deveras há frustração da expectativa de entrada de divisas no território nacional e a duas, no caso de inadimplência, pela obstaculização do acesso de exportador mais competente a linhas de crédito facilitadas.

De qualquer modo, deve ser garantido ao erário o status quo ante em relação ao ACC defeituoso, que é alcançado pela responsabilização dos causadores do abalo de sua saúde financeira.[13]

Por conseguinte, a não ocorrência da exportação engendra maiores despesas aos sujeitos da operação financeira, conforme será demonstrado nas próximas linhas.

O cancelamento sem mercadoria embarcada até a data prevista no contrato responsabiliza o exportador a pagar ao banco operador de câmbio "os valores referentes a:

- devolução do adiantamento em moeda nacional (ACC);

- diferença de taxa de câmbio entre a data da contratação e o dia do cancelamento;

- deságio (juros);

- IOF pela descaracterização do ACC;

- IR sobre os juros remetidos ao banqueiro no exterior que concedeu a linha de crédito ao banco brasileiro; e

- encargo financeiro [(Lei nº 7.738/89), calculado conforme Anexo 12]; e

- demais despesas."[14]

O cancelamento com mercadoria embarcada responsabiliza o exportador ao pagamento dos "valores referentes a:

- devolução do adiantamento em moeda nacional (ACE);

- diferença de taxa de câmbio entre a data da contratação e o dia do cancelamento;

- deságio (juros); e

- demais despesas."[15]

Com efeito, sobre o cancelamento do ACE não há incidência do encargo financeiro porquanto é necessariamente posterior ao embarque das mercadorias, de forma que não há qualquer ameaça às reservas cambiais do país, portanto, sem sentido a cobrança da citada exação indireta.

Por outro lado, a baixa do contrato de câmbio de exportação ocorre quando não for possível prorrogar o prazo para liquidação e quando não houver consenso entre as partes acerca do cancelamento, sendo assim, operação contábil unilateralmente efetivada pelo banco operador de câmbio, quando o exportador não tiver recursos financeiros para pagar todas as despesas do cancelamento, "sujeitando o exportador ao pagamento, em processo judicial, dos valores relativos a:

- devolução do adiantamento em moeda nacional (ACC);

- diferença de taxa de câmbio entre a data da contratação e o dia do cancelamento;

- deságio (juros);

- IOF pela descaracterização do ACC;

- IR sobre os juros remetidos ao banqueiro no exterior que concedeu a linha de crédito ao banco brasileiro; e

- encargo financeiro [(Lei nº 7.738/89), calculado conforme Anexo 12]; e

- demais despesas."[16]

De fato, a única diferença entre o cancelamento e a baixa do ACC é a presença de consentimento da instituição financeira e do exportador na primeira, e ausência, na segunda. Inclusive, as conseqüências advindas de ambos são rigorosamente iguais. Ademais, a baixa trata-se de operação contábil unilateralmente efetivada pela instituição financeira, pois dessa forma evitam-se discussões sobre a faculdade de fazê-lo ou não (que, em verdade, sequer existe, porque é obrigada a tanto).

Nesse sentido, tornam-se irrelevantes disposições das partes quando verificadas as situações fáticas que ensejam a cobrança do encargo financeiro. Não por menos que se trata de tributo (a ser melhor explicado nos próximos parágrafos), sendo esse seu fato jurídico tributário (fato gerador): uma vez ocorrido, resta devida a exação.

Embora à primeira vista a natureza jurídica do encargo financeiro pareça dúbia, uma vez que pende entre sanção (multa) e tributo, está pacífico na doutrina e na jurisprudência tratar-se de espécie do último.

Em verdade, o encargo financeiro representa um tributo recolhido de maneira indireta, como resultado da atividade do Estado tida como parafiscal. Isso porque uma autarquia é responsável por seu recolhimento (no caso, o BACEN), sendo o fato gerador de caráter transitório, instantâneo, o cancelamento ou a baixa do contrato de câmbio.[17]

Por parafiscalidade entenda-se a utilização dos tributos com vistas a atingir fins não puramente de arrecadação, naturalmente dentro dos contornos constitucionais e legais

Como exemplo, compete à União estabelecer, lastreada na proporcionalidade que embasa todo o ordenamento jurídico pátrio, a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) visando incentivar ou desestimular o consumo. Ainda, o encargo financeiro não tem natureza de multa.

O encargo financeiro é devido por expressa previsão legal ao BACEN, no caso do cancelamento ou baixa na posição de câmbio. Tal encargo não se confunde com multas ou penas previstas no direito civil, administrativo, penal ou comercial.[18]

Quanto à responsabilidade pelo recolhimento do encargo financeiro, a lei é suficientemente clara para desautorizar a priori interpretações divagadoras não obstante as tentativas de bancos em subverter judicialmente a regra estipulada pelo art. 12, §1o, da Lei no 7.738/89.[19]

Inclusive, o entendimento jurisprudencial é no sentido de que o encargo financeiro teria nítido caráter indenizatório, em razão do cancelamento ou baixa na posição de câmbio do contrato por parte do Banco Central, ainda que a lei sujeite o exportador ao seu pagamento, pois também responsabiliza a instituição financeira por seu recolhimento, havendo, assim, constituído o direito de regresso contra o exportador para ressarcir-se do valor utilizado.[20]

Assim, por não haver relação entre o BACEN e o exportador, o encargo financeiro é devido pela instituição financeira, não devendo a autarquia aguardar que o banco cobre o exportador, para o posterior pagamento do encargo.[21]

O pagamento do encargo financeiro ocorre da seguinte forma: o BACEN notifica a instituição financeira por meio do Sistema de Lançamentos do Banco Central – SLB, ou por outro mecanismo que assegure o seu recebimento, para o recolhimento do valor devido, em moeda nacional, pelo encargo financeiro no prazo de cinco dias úteis, que se inicia na data do recebimento da notificação pela instituição financeira[22].

Findo este prazo, o valor é acrescido de juros de mora e multa de mora, nos termos do art. 37 da Lei nº 10.522/02 e, em caso de não-pagamento, o débito será cadastrado na Dívida Ativa do Banco Central do Brasil e o devedor inscrito no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados – CADIN.

Conforme demonstrado acima, a jurisprudência entende que a instituição financeira pode se restituir do valor recolhido, por meio de ação regressiva a ser ajuizada contra o exportador.

Além disso, o encargo financeiro não é exigível, mesmo havendo cancelamento ou baixa do ACC, quando tratar-se de valor menor ou igual a cinco mil dólares americanos (ou equivalente) e não representar mais de dez por cento do valor total do contrato de câmbio (Art. 12, §3o, "b" da Lei no 7.738/89).

Na falência, o valor pago ao exportador a título de Adiantamento de Contrato de Câmbio também é restituível (Art. 86, II da LRF c.c. Art. 75, §§ 3o e 4o da Lei no 4.728/65), com base no privilégio concedido pelo legislador ao crédito das instituições bancárias a fim de imediatamente incentivar a concessão de ACCs pelas mesmas aos exportadores e mediatamente fomentar a exportação.[23]
CAPÍTULO 2: ACC/ACE NA FALÊNCIA
2.1. ASPECTOS HISTÓRICOS

Na fase mais primitiva do direito romano, o direito quiritário (ius quiritium, ius civile) admitia a adjudicação do devedor insolvente (addicere), permanecendo este por sessenta dias em estado de servidão para com seu credor, podendo o devedor, caso não fosse solvida a dívida durante tal período, ser vendido como escravo ou executado e ter repartido o seu corpo entre todos seus credores.

Com a promulgação da Lex Poetelia Papiria, em 428 a.C., criou-se no direito romano a execução patrimonial do devedor insolvente, não havendo mais a satisfação do débito por responsabilidade pessoal.

Nesse sistema, estabeleceu-se a bonorum venditio, em que os bens do devedor eram dele desapossados e transferidos a uma espécie de curador, responsável por sua administração.

Em 737 a.C, fundou-se pela Lex Julia Bonorum o instituto da cessio bonorum, dando a oportunidade ao devedor de ceder seus bens ao credor, que podia vendê-los separadamente agindo em nome próprio, mas também em benefício de outros credores.

A Lex Julia Bonorum possui traços da atual falência, como a formação da massa falida e divisão dos ativos, e até mesmo com providências contra atos fraudulentos cometidos pelo devedor para desfalque de seu patrimônio (como exemplo da actio pauliana).

Adiante, na Idade Média, a atuação dos credores nos processos de insolvência passou a ter ingerência do poder judiciário, tendo sido o concurso de credores rigorosamente disciplinado, com habilitação de credores em juízo perante o qual processa-se a arrecadação dos bens do devedor.

A transformação do concurso de credores em falência teve fundamento na expansão do comércio neste estágio histórico, sobretudo de natureza marítima, observando-se que o processo era aplicado a toda espécie de devedor, comerciante ou não.

Apesar de tanto assemelhar-se com a atual falência, o devedor era ainda visto como fraudador, enganador (falliti sunt fraudatores) e exatamente o porquê da expressão falência, do latim fallere, que significa enganar, falsear. E por essa concepção do falido, a falência era vista como um delito, com penas que variavam da prisão à mutilação.

O Código Comercial francês de 1807, por sua vez, teve importante papel na evolução do instituto, que passou a assumir um caráter econômico-social e, como resultado, a modificação do próprio conceito de empresa, de instituição social, que assim é vista hoje.

Assim, estabeleceu-se a distinção entre devedores honestos e desonestos, com os benefícios da moratória, como espécie de concordata.

Em Portugal e no Brasil (como colônia), as Ordenações Afonsinas, publicadas em 1521, disciplinavam o concurso, estabelecendo prioridade ao credor que inicia-se a execução e dispondo sobre a prisão do devedor até que pagasse seu débito.

Já as Ordenações Filipinas de 1603 consagraram a distinção entre mercadores desonestos ("que se levantavam com fazenda alhea") e honestos ("os que caírem em pobreza sem culpa sua, por receberem grandes perdas no mar, ou na terra em seus tratos e comércios lícitos, não constatando algum dolo, ou malícia"), sendo os primeiros ladrões públicos, que restavam inabilitados para o comércio ou até mesmo impondo-lhes penas como o exílio ou a morte.

Com o Alvará de 13 de novembro de 1756, promulgado pelo Marquês de Pombal, formou-se o verdadeiro processo de falência mercantil, que corria perante juízo comercial e era voltado a comerciantes, mercadores e homens de negócio.

Em tal procedimento, incumbia ao falido dirigir-se à Junta Comercial e jurar a causa de falência, entregando as chaves "dos armazéns das fazendas" e do Livro Diário (como um livro contábil), além de declarar todos os bens que possuía.

Assim, era formado o inventário dos bens do falido, com a convocação por edital de seus credores.

Arrecadados os bens, o produto tinha 10% destinado ao próprio falido para o sustento próprio e de sua família, e o restante dividido aos credores.

Mesmo após a Independência do Brasil, a matéria continuou regulada pelas leis portuguesas até 1850, com o Código Comercial brasileiro, que cuidava "das quebras" e, processualmente, pelo Decreto nº 738, de 25 de novembro de 1850.

Em 1890, a legislação referida foi derrogada pelo Decreto nº 917, de 24 de novembro de 1890, que, por sua vez, impotente para coibir abusos e fraudes, seguiu-se a Lei nº 859, de 16 de agosto de 1902, posteriormente substituída, em 1908, pela Lei nº 2.024.

Revista pelo Decreto nº 5.746, de 9 de novembro de 1929, a Lei nº 2.024 foi revogada com a promulgação do Decreto-lei nº 7.661/45, que permaneceu em vigor até o advento da LRF, nº 11.101/05.

A atual legislação falimentar tem como princípio fundamental o quanto estabelecido em seu Art. 47, pela recuperação econômica da empresa, "a fim de permitir a fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".

Além disso, a LRF preza pela recuperação das sociedades e empresários recuperáveis, redução do custo do crédito no Brasil, segurança jurídica, entre outros valores.
2.2. NOÇÕES GERAIS SOBRE O INSTITUTO DA FALÊNCIA

A expressão falência, como anotado, deriva do verbo latino fallere, com sentido de falsear, enganar, faltar com a confiança, cair, tombar, incorrer em culpa, cometer uma falha.[24]

E justamente assim era considerado o falido, sujeito a penas que variavam de seu exílio a sua morte.

Atualmente, no entanto, a falência tem sentido econômico-social e é objetivada somente a casos extremos, pelo interesse público a que propõe, isto é, antes de tudo, da sobrevivência da empresa (como dito, princípio fundamental da LRF), vista hoje como instituição social, com a manutenção do sustento de trabalhadores e suas respectivas famílias.

A falência pode ser dividida e analisa sob dois ângulos distintos, econômico e jurídico.

Como conceito econômico, pode-se entender a falência como um fenômeno econômico, um fato patológico que sucede efeitos dentro do mercado financeiro, especialmente no tocante ao crédito.[25]

Já sob o ângulo jurídico, falência é um processo de execução coletiva, por força da vis attractiva do juízo falimentar a que sujeitam-se todos os credores, contra o devedor insolvente.

Com efeito, a falência é um instituto complexo, com preceitos de direito comercial, civil, administrativo, processual e penal (dos crimes falimentares), havendo controvérsia quanto à sua natureza jurídica, se instituto de direito objetivo, processual ou administrativo.

Tal diversidade, vale dizer, imprime-lhe natureza sui generis, não se podendo estabelecer a prevalência de normas componentes desse complexo sistema, regido por princípios e diretrizes que lhe são próprios.

No processo falimentar, a divisão de ativos procede-se na regra estatuída pelo art. 83, da LRF, sendo assim: (i) créditos trabalhistas até 150 (cento e cinqüenta) salários mínimos por credores ou decorrente de acidente de trabalho; (ii) créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado; (iii) créditos tributários, com exceção às multas tributárias; (iv) créditos com privilégio especial; (v) créditos com privilégio geral; (vi) créditos quirografários, entre outros.

O titular de adiantamento em dinheiro em decorrência do contrato de câmbio, como não é condicionado ao concurso de credores, não deve ser tratado como se credor da massa falida fosse, mas sim como proprietário de um bem em posse da falida.

Apesar disso, a restituição somente ocorrerá após o pagamento do crédito previsto no art. 151, da LRF, isto é, de créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos três meses anteriores à decretação da falência, até o limite de cinco salários mínimos por trabalhados, demonstrando alguma preocupação social do legislador com a quebra da empresa (e respectiva função social que exerce).
2.3. PEDIDO DE RESTITUIÇÃO

Para que se proceda à restituição dos bens previstos no art. 86, da LRF, como os ACCs e ACEs, importante que seja observado o procedimento especial a que este se subordina por lei.

Como prevê o art. 87, da LRF, o pedido de restituição deve ser fundamentado, por escrito, esclarecendo o direito da coisa reclamada. Tal pedido procede-se na forma de petição inicial, que será distribuída livremente, mas de competência preventa do processo de falência.

A petição inicial da restituição será formalizada em autos suplementares, independentes dos autos do processo de falência, evitando-se a morosidade resultante do alto número de providências tomadas nos autos principais pela serventia do juízo.

Para Fábio Ulhoa Coelho, baseado nos princípios da celeridade e de economia processual, bases da LRF (cf. art. 75, parágrafo único) e como o juiz togado deve se prestar a função mais nobre, o pedido de restituição de bens pode ser realizado perante o administrador judicial, que, verificando a existência de vínculo entre o banco estrangeiro e o nacional ao financiamento de exportador via ACC, deverá proceder à restituição dos valores.

Seguindo o procedimento previsto em lei, o juiz mandará intimar o falido, o Comitê de credores e o administrador judicial para que se manifestem. Recebida manifestação por alguma das partes, esta será processada como contestação e implicará na condenação ao pagamento de sucumbência.

Durante o trâmite do pedido de restituição, a disponibilidade da coisa ficará suspensa. Caso o objeto do pedido seja bem perecível, deteriorável, sujeitos a considerável desvalorização ou de conversação arriscada ou dispendiosa, o administrador judicial, em nome da falida, apresentará exceção à indisponibilidade prevista no art. 113 da LFR, podendo ser vendido o bem, valor que será repassado ao autor da restituição, se julgado procedente o seu pedido.

Para o julgamento do pedido de restituição, o juiz poderá abrir instrução probatória, com produção de prova pericial ou oral e, não havendo mais provas, o juiz proferirá sentença sobre o pedido de restituição.

Na primeira hipótese, julgando o pedido de restituição procedente, será determinada a entrega da coisa no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, ou a restituição em dinheiro, se a coisa não mais existir. Dessa sentença caberá apelação, recebida apenas no efeito devolutivo. No entanto, para que o autor do pedido de restituição tenha a coisa antes do trânsito em julgado da sentença, deverá prestar caução, como dispõe o art. 90, da LRF, sendo assim provisória a execução.

Na segunda hipótese, se julgado improcedente o pedido de restituição, quando for o caso, o autor será incluído no quadro-geral de credores, na classificação que lhe couber, podendo a sentença declarar inexistência de crédito.

Se julgado improcedente o pedido e incluir o crédito no quadro-geral de credores, o autor poderá apelar da sentença, com o objetivo de ter a restituição acolhida. No caso do crédito oriundo de ACC ou ACE, se julgada procedente a restituição e transitar em julgado a sentença, os valores adiantados serão restituídos ao banco nacional.

Isto é, o autor do pedido de restituição, por seu privilégio, receberá os valores decorrentes de ACC ou ACE antes de qualquer credor, até mesmo trabalhista.[26]

Um dos motivos para tal privilégio da restituição em ACC e ACE consiste na própria natureza do contrato, porquanto este representa dinheiro de terceiro em poder da falida[27]. Não me parece justa a explicação, pois inúmeras formas de concessão de crédito possuem o mesmo caráter, mas são tratadas como quirografárias.

O motivo mais sensato para tal previsão normativa baseia-se na política econômica de incentivo à exportação. Ao estabelecer que o portador de tal crédito tenha o privilégio da restituição em caso de falência do exportador, a lei diminui o risco da instituição financeira não ter fundos ao crédito concedido, não sendo computado o spread da inadimplência do devedor, e, assim, os juros pactuados neste tipo de operação são mais baixos que outras formas de fomento à atividade industrial e mercantil.


Lucas Manzoli de Almeida

ALMEIDA, Lucas Manzoli de. Contrato de câmbio para exportação na falência e na recuperação de empresa. Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4214, 14 jan. 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/32126>. Acesso em: 15 jan. 2015.

Leia mais: http://jus.com.br/artigos/32126/contrato-de-cambio-para-exportacao-na-falencia-e-na-recuperacao-de-empresa#ixzz3Ov0wmhmW

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