LEGISLAÇÃO

sábado, 22 de julho de 2017

O transporte aéreo de carga e a limitação tarifada: um assunto ainda em discussão!


O transporte aéreo de carga e a limitação tarifada: um assunto ainda em discussão!

A correta inteligência da decisão de repercussão geral do STF

Paulo Henrique Cremoneze|Marcio Sebastião Aguiar


O transporte aéreo de carga e a limitação tarifada: um assunto ainda em discussão! A correta inteligência da decisão de repercussão geral do STF


A decisão de repercussão geral do STF sobre a convenção de Montreal não se aplica aos casos de transportes aéreos de cargas, mas apenas aos de extravios de bagagens de passageiros. Expõe-se a inconstitucionalidade e o anacronismo na limitação tarifada.


No dia 25 de maio de 2017, o Supremo Tribunal Federal decidiu, nos autos do Processo do Recurso Extraordinário no 636331-RJ, com repercussão geral relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, que aos casos de extravios de bagagens em transportes aéreos de passageiros, aplica-se a Convenção de Montreal, ao invés do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Entendeu o STF, nos casos específicos de extravio de bagagens em transportes aéreos, prevalecerá a aplicação da Convenção de Montreal sobre o Código de Defesa do Consumidor.

A decisão se deu em um caso chancelado como de “repercussão geral”, razão pela qual seu conteúdo tem sido alvo de justificável preocupação por parte do mercado segurador brasileiro.

Nesse sentido, a repercussão geral não tem incidência específica ao transporte internacional de cargas, que não foi objeto de apreciação pela Corte Suprema.

Portanto, ratificamos nosso entendimento explanado no artigo abaixo reproduzido, escrito algum tempo atrás.

Em nosso modesto entender, ele é mais atual do que nunca!

Sentimo-nos seguro em afirmar que a decisão tem aplicabilidade restrita aos casos de extravios de bagagem e aos casos de danos ocorridos durante o transporte internacional aéreo de carga.



Com efeito, os transportes aéreos de cargas não se submetem ao conteúdo da decisão com o selo de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal.

E vamos mais além: a incidência ou não da legislação consumerista e a primazia da Convenção de Montreal são de menor importância porque existem muitas fontes legais hábeis para a regulação do assunto. E mesmo que se empresta à Convenção importância destacada há de se esclarecer que a limitação tarifada só se aplica em casos de acidentes de navegação, não aos casos comuns, isto é, de meros inadimplementos contratuais.

Casos com a estampa da culpa grave também não são submetidos à limitação tarifada, figura que é, ao menos para as cargas, espécies com valores certos e documentados (ao contrário das bagagens extraviadas) absolutamente anacrônica e inconstitucional, uma vez que sem apoio no mundo dos fatos e contrária à garantia fundamental da reparação civil ampla e integral.

De qualquer modo, a limitação de responsabilidade não poderá ser aplicada em desfavor de seguradora legalmente sub-rogada na pretensão de um segurado embarcador ou consignatário de carga, uma vez que possui em seu favor as regras que tratam exatamente da sub-rogação e a força do Enunciado de Súmula nº 188 do próprio Supremo Tribunal Federal.

Por isso, nossa confiança quanto à não subsunção da decisão destacada aos casos de sinistros de transportes aéreos de cargas, com desídias operacionais dos transportadores.

No mais, mantemos a linha de argumentação antes defendida e ora bisada sobre, com o perdão pelo trocadilho irônico, a limitação da limitação de responsabilidade da Convenção de Montreal.

A saber:

Segundo dados fornecidos pela Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), a cada dia, mais de US$ 18,6 bilhões de mercadorias viajam pelo ar, cerca de 1/3 de todo o comércio mundial por valor.

Trata-se de um setor pujante e muito lucrativo e mesmo com a retração econômica dos últimos anos é um mercado com grande margem para expansão, até porque constituído por grandes conglomerados transnacionais.

Não é mais exagero, muito menos devaneio, imaginar que o transporte marítimo internacional de cargas sofrerá futura e poderosa concorrência por parte do modo aéreo de transporte.

Com alguns ajustes e um plano logístico bem desenvolvido, é possível imaginar um cenário de aberta concorrência, salvo para as cargas muito pesadas, com enorme vantagem para o transporte aéreo, inegavelmente mais rápido, mais eficiente, mais seguro e mais qualificado que o transporte marítimo.

Os armadores que se cuidem com seus oligopólios e seus desmandos operacionais, mas o futuro, já antevisto no presente, parece ser mesmo pertencente aos transportadores aéreos.

Sob esse prisma, o transporte aéreo de cargas representa uma grande fatia dos mercados logísticos nacional e internacional, e por isso, a limitação de responsabilidade ou indenização tarifada é um tema de grande impacto econômico.

Especialmente presente no transporte aéreo internacional de carga, o tema da indenização tarifada é um dos mais espinhosos e polêmicos, suscitando estudos, pareceres e muito debates nos casos concretos levados o Poder Judiciário.

Ao contrário do caso do transporte marítimo internacional de carga, no qual a limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo não é aceita pelo Direito brasileiro, porque prevista em cláusula abusiva de contrato de adesão, no modo aéreo existe muita polêmica em torno da sua aplicação ou não, uma vez que a previsão não é meramente contratual, mas convencional (convenção internacional com aplicação no Direito brasileiro).

A figura da limitação de responsabilidade surgiu a partir da Convenção de Varsóvia de 1929, ingressando no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 1931, por meio do Decreto nº 20.704.

Referida Convenção foi substituída por outra, a de Montreal, ratificado pela Decreto nº 5.910/2006, que manteve o mesmo conteúdo com viés limitador, favorecendo transportadores aéreos.

Vê-se, portanto, que é algo que perturba a ordem jurídica brasileira já há algum tempo, suscitando acalorados debates entre seus defensores e seus críticos.

Hoje, de um modo geral, a jurisprudência brasileira se posiciona em boa parte contra o reconhecimento da limitação de responsabilidade prevista na Convenção de Montreal, mas não se pode dizer que se trata de posicionamento pacífico, pois não são poucos os julgados, monocráticos ou colegiados, reconhecendo-a.

Pensamos que o assunto ainda suscitará muita discussão, mas nos filiamos aos partidários do não reconhecimento da validade e eficácia da limitação de responsabilidade, por se tratar de norma convencional manifestamente inconstitucional e, até mesmo, anacrônica.

Aliás, a bem da verdade, os defensores da sua aplicação fazem-no, senão com casuísmo, imersos em um “topói” jurídico, porque consciente ou inconscientemente ignoram que a própria norma limitadora da Convenção somente é aplicável aos sinistros originários de problemas com a navegação aérea ou despidos de culpa do transportador.

Significa dizer que jamais a limitação poderia ser aplicada, mesmo com base na Convenção de Montreal (que bisou a antiga Convenção de Varsóvia) em casos simples de falta ou de avaria de alguma carga confiada ao transportador aéreo para o cumprimento de obrigação de resultado.

Isso, independentemente da fonte legal aplicável ao caso concreto, ou seja, o Código Brasileiro de Aeronáutica, o Código Civil, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor ou a própria Convenção de Montreal (Varsóvia).

Boa parte da polêmica em torno do assunto dá-se mais por conta de erro de inteligência da própria Convenção Internacional do que pelas razões ontológicas ou exegéticas.

Explicando melhor:


A limitação de responsabilidade instituída pela Convenção de Varsóvia (base da hoje vigente Convenção de Montreal) há de ser analisada sob enfoque temporal, isto é, à luz do contexto tecnológico da época em que foi elaborada, início do século XX, na fase de formação da indústria aérea, atividade até então de elevadíssimo risco.

Quando a norma da limitação de responsabilidade foi imaginada, o objetivo, até então saudável, era o de proteger e incentivar uma atividade empresarial em fase embrionária, chancelada pelo risco, pouco segura e até mesmo com um caráter de aventura.

Sob tal conjuntura, por ser uma indústria em formação, era necessário um certo estimulo, um verdadeiro fomento para sua consolidação em mercado em gestação, com uma tecnologia praticamente rudimentar quando comparado aos dias atuais, nos quais as aeronaves são produzidas com o conceito de “risco zero”.

Veja que sequer ousamos falar em aplicação da teoria tridimensional do Direito, mas no reconhecimento simples de uma situação fático-histórica que já não existe mais desde os anos sessenta do mesmo século XX.

Nessa linha, a Convenção de Varsóvia, foi instituída para garantir, tanto econômica, quanto juridicamente, um mercado principiante, criando um verdadeiro arcabouço legal que protegia o transportador aéreo por eventuais prejuízos causados a carga e passageiros.

Aquela Convenção – base da atual, a de Montreal, nunca é demais repetir – foi criada e se consolidou como uma ferramenta legal de inegável proteção do transportador aéreo. Não se tratava de divisão de riscos entre todos os interessados e/ou participantes da atividade, incluindo os embarcadores e os consignatários das cargas confiadas para transportes, mas, sim, do esvaziamento dos ônus das responsabilidades dos transportadores.

Mas, mesmo assim, a própria Convenção, embora inegavelmente orientada para a proteção dos transportadores, introduziu mecanismos de calibragem quanto ao benefício da indenização tarifada, mitigando-o diante da comprovação de culpa do transportador ou praticamente reconhecendo-a apenas em relação aos acidentes aéreos de navegação, não quanto aos casos de simples descumprimento de obrigação de resultado.

Isso que, até hoje, é, deliberada ou inconscientemente, ignorado por muitos.

Contudo, o transporte aéreo, como sabido e ressabido (ou ao menos assim deveria ser) há muitas décadas deixou de ser uma atividade de grande risco e em fase inicial.

Ao contrário, trata-se de atividade efetivamente consolidada, com pequena margem de risco, marcada como ligada à área de alta tecnologia, extremamente segura, com índices muito pequenos de acidentes.

Hoje, as aeronaves são produzidas com margem zero de erro para falhas e a segurança do tráfego aéreo é intensa, com apoio de tecnologia de ponta. Trata-se, pois, de um setor fiscalizado ao extremo, por diversas organizações internacionais, privadas e estatais. Sob esse enfoque, quando danos ocorrem as cargas confiadas para transportes, invariavelmente não estão relacionados a quaisquer fatos da aviação, mas aos muitos erros operacionais cometidos pelas empresas de transportes aéreos.

A segurança empregada para a construção e uso de aeronaves e para o controle do tráfego não se repete, em termos qualitativos, nos serviços das empresas transportadoras.

Muito aproveita insistir nisso: os danos (faltas e/ou avarias) não são, a rigor, comumente, causados por acidentes aéreos, mas por descumprimento dos deveres objetivos de guarda, conservação, transporte e restituição, próprios da obrigação contratual de transporte aéreo de carga, essencialmente uma obrigação de resultado, informada pela ideia de responsabilidade civil objetiva imprópria.

Essa afirmação é muito importante, pois ainda que se queira emprestar à norma convencional amplas validade e eficácia, tem-se, de plano, que ela seria, como de fato é, bastante para afastar o benefício tarifado indenizatório aos transportadores aéreos.

Isso porque, nunca é ocioso repetir, a própria Convenção de Montreal (redesenho normativo da Convenção de Varsóvia) expressamente afasta a limitação da responsabilidade nos casos não tipificados por acidentes de navegação e/ou casos marcados pelo signo da culpa em sentido estrito.

Em outras palavras: nos transportes aéreos de cargas não há que se falar em incidência da limitação de responsabilidade se não houver, antes, no esquadrinhamento fático, algum tipo acidente de navegação.

E mesmo em sendo constatada a ideia de acidente aéreo de navegação, a limitação de responsabilidade só terá cabimento se não se constatar a presença da culpa em sentido estrito, inescusável, no elemento informador do sinistro.

Nessa linha, pois, não há como se justificar, no plano ontológico, um tratamento tão diferenciado e benéfico aos transportadores aéreos e tão prejudicial aos interesses dos donos de cargas e seus seguradores. Não há mais, em verdade, como reconhecer a limitação de responsabilidade em face do atual ordenamento jurídico e do avanço tecnológico empregadonos muitos instantes da chamada indústria da aviação, muito bem consolidada e estatisticamente considerada uma das mais seguras do mundo.

Diante do risco inegavelmente maior, o benefício maior não mais se justifica, fática e moralmente.

Se, no passado, o benefício da limitação de responsabilidade foi um fator de equilíbrio de forças, de promoção da justiça e de motivação para o desenvolvimento pleno de um ramo econômico em formação e muito importante para todos, hoje configura um abuso inaceitável, um instrumento de assimetria de forças e um convite indecoroso à má prestação de serviços, ao descaso operacional e à incúria administrativa.

Não há que se falar em teoria do risco ou qualquer coisa que o valha, mas em concessão de superpoderes a uma das partes de uma dada relação jurídica e esvaziamento de direitos de outra, sendo que o prejuízo desta não se limita nela mesma, mas se espraia por toda a sociedade.

O Superior Tribunal de Justiça, recentemente, ao julgar o Recurso Especial 1289629/SP, decidiu que não se aplica a indenização tarifada da Convenção de Montreal (Varsóvia).

Sentimos particular satisfação com a decisão, porque fomos os advogados da parte vencedora no litígio, a seguradora da carga avariada pelo transportador aéreo.

O voto do relator, Ministro Marco Antonio Bellizze, abordou muitos aspectos relevantes acerca da responsabilidade civil do transportador aéreo de carga e deixou claro que não há que se falar de limitação de responsabilidade deste quando o caso concreto não se cuidar de avarias decorrentes do transporte aéreo em si (acidente de navegação), mas de mera desídia operacional, além de enfatizar, em termos gerais, que a indenização tarifada era algo que tinha algum sentido no passado, quando o atividade era circundada pelo espectro do risco, mas não mais a tem hoje, quando a tecnologia fez dos voos acontecimentos muito seguros.

Eis parte do voto:


“1. A jurisprudência desta Corte Superior perfilha, atualmente, o entendimento de que, estabelecida relação jurídica de consumo entre as partes, a indenização pelo extravio de mercadoria transportada por via aérea deve ser integral, não se aplicando, por conseguinte, a limitação tarifada prevista no Código de Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia. Dessa orientação não se dissuade. Todavia, tem-se pela absoluta inaplicabilidade da indenização tarifada contemplada na Convenção de Varsóvia, inclusive na hipótese em que a relação jurídica estabelecida entre as partes não se qualifique como de consumo, especialmente no caso em que os danos advindos da falha do serviço de transporte em nada se relacionam com os riscos inerentes ao transporte aéreo.

2. O critério da especialidade, como método hermenêutico para solver o presente conflito de normas (Convenção de Varsóvia de 1929 e Código Brasileiro de Aeronáutica de 1986 x Código Civil de 2002), isoladamente considerado, afigura-se insuficiente para tal escopo.Deve-se, ainda, mensurar, a partir das normas em cotejo, qual delas melhor reflete, no tocante à responsabilidade civil, os princípios e valores encerrados na ordem constitucional inaugurada pela Constituição Federal de 1988. E inferir, a partir daí, se as razões que justificavam a referida limitação, inserida no ordenamento jurídico nacional em 1931 pelo Decreto n. 20.704, encontrar-se-iam presentes nos dias atuais, com observância ao postulado da proporcionalidade.

3. A limitação tarifária contemplada pela Convenção de Varsóvia aparta-se, a um só tempo, do direito à reparação integral pelos danos de ordem material injustamente percebidos, concebido pela Constituição Federal como direito fundamental (art. 5º, V e X), bem como pelo Código Civil, em seu art. 994, que em adequação à ordem constitucional, preceitua que a indenização mede-se pela extensão do dano. Efetivamente, a limitação prévia e abstrata da indenização não atenderia, sequer, indiretamente, ao princípio da proporcionalidade, notadamenteporque teria o condão de esvaziar a própria função satisfativa da reparação, ante a completa desconsideração da gravidade e da efetiva repercussão dos danos injustamente percebidos pela vítima do evento. (...)”

(...) Reprisa-se, no ponto, o entendimento de que as razões pelas quais a limitação da indenização pela falha do serviço de transporte se faziam presentes quando inseridas no ordenamento jurídico nacional, em 1931, pelo Decreto n. 20.704, não mais subsistem nos tempos atuais. A limitação da indenização inserida pela Convenção de Varsóvia, no início do século XX, justificava-se pela necessidade de proteção a uma indústria, à época, incipiente, em processo de afirmação de sua viabilidade econômica e tecnológica, circunstância fática inequivocamente insubsistente atualmente, tratando-se de meio de transporte, estatisticamente, dos mais seguros. Veja-se, portanto, que o tratamento especial e protetivo então dispensado pela Convenção de Varsóvia e pelo Código Brasileiro de Aeronáutica ao transporte aéreo, no tocante a responsabilização civil, devia-se ao risco da aviação, relacionado este à ocorrência de acidentes aéreos. (...)

(grifos nossos)



Destacamos, por oportuno, a parte negritada do texto acima reproduzido e que fundamenta a não aplicação da indenização tarifada justamente na mudança de cenário fático entre à época da sua elaboração e os dias correntes, a saber: “(...) A limitação da indenização inserida pela Convenção de Varsóvia, no início do século XX, justificava-se pela necessidade de proteção a uma indústria, à época, incipiente, em processo de afirmação de sua viabilidade econômica e tecnológica, circunstância fática inequivocamente insubsistente atualmente, tratando-se de meio de transporte, estatisticamente, dos mais seguros. Veja-se, portanto, que o tratamento especial e protetivo então dispensado pela Convenção de Varsóvia e pelo Código Brasileiro de Aeronáutica ao transporte aéreo, no tocante a responsabilização civil, devia-se ao risco da aviação, relacionado este à ocorrência de acidentes aéreos. (...)”.

Destacamos, ainda, outro fundamento muito importante do “Decisum”, escrito no mesmo sentido de antiga bandeira advocatícia nossa: a inconstitucionalidade da limitação de responsabilidade.

Com efeito, sentimo-nos muito seguros em afirmar que a norma convencional da limitação de responsabilidade, além de descabida por razões fáticas e lógicas, de cunho moral duvidoso, é manifestamente inconstitucional, uma vez que ofensiva à garantia constitucional fundamental da “reparação civil ampla e integral”.

O sistema legal brasileiro como um todo, a começar por sua Constituição e justamente na sua parte mais importante, a dos direitos e garantias fundamentais, expressamente determina que o dano e o prejuízo devem ser reparados de forma ampla e integralmente.

Esse conceito garantidor constitucional tem mais assento em casos que ferem letalmente conceitos jurídicos como o do “neminem laedere”, que dispõe que a ninguém é dado causar dano a outrem, ou o da “cláusula de incolumidade”, próprio de quem, como depositários e transportadores de cargas, abraçam obrigações contratuais de resultado e tipificada por rol de deveres objetivos.

Nesse sentido e sem a necessidade de nos alongarmos mais, deixamos as palavras da decisão mesma falarem por nós:


“A limitação tarifária contemplada pela Convenção de Varsóvia aparta-se, a um só tempo, do direito à reparação integral pelos danos de ordem material injustamente percebidos, concebido pela Constituição Federal como direito fundamental (art. 5º, V e X), bem como pelo Código Civil, em seu art. 994, que em adequação à ordem constitucional, preceitua que a indenização mede-se pela extensão do dano. Efetivamente, a limitação prévia e abstrata da indenização não atenderia, sequer, indiretamente, ao princípio da proporcionalidade, notadamente porque teria o condão de esvaziar a própria função satisfativa da reparação, ante a completa desconsideração da gravidade e da efetiva repercussão dos danos injustamente percebidos pela vítima do evento. (...)”

Vemos, pois, que existem muitos e sólidos argumentos, tanto de ordem lógica, como de ordem constitucional, desqualificadores da indenização tarifada, sendo estes alocados ao corpo de uma importantíssima decisão de um Tribunal Superior, mais do que nunca investida de força de precedente judicial por conta do conteúdo da nova ordem processual civil brasileira.

Mas, sempre é bom repetir, ainda que queiramos deixar de lado a lógica da realidade atual da indústria do transporte aéreo e ainda que queiramos não orientar nosso entendimento contra a indenização tarifada da Convenção de Montreal (Varsóvia) com base na garantia constitucional da reparação civil ampla e integral, ainda assim afirmaríamos que, não raro, os defensores da sua incidência ignoram que ela jamais poderia, como de fato não pode, ser aplicada em casos de sinistros comuns, de faltas e/ou avarias de cargas, mas apenas nos grandes casos de sinistros de navegação área, desde que não informados pela figura da culpa inescusável e em sentido estrito.

Nesse sentido, invocamos mais uma vez o referido “Decisum”, cujo conteúdo deixa evidente que a aplicabilidade da Convenção internacional se liga diretamente aos casos relacionados aos acidentes aéreos de navegação, não dos demais sinistros.

A própria Convenção de Montreal estabelece no artigo 25 exclusões a sua aplicabilidade, notadamente os casos de danos não relacionados aos fatos intrínsecos da aviação:


“Artigo 22 – Limites de Responsabilidade Relativos ao Atraso da Bagagem e da Carga

(...)

4. Em caso de destruição, perda, avaria ou atraso de uma parte da carga ou de qualquer objeto que ela contenha, para determinar a quantia que constitui o limite de responsabilidade do transportador, somente se levará em conta o peso total do volume ou volumes afetados. Não obstante, quando a destruição, perda, avaria ou atraso de uma parte da carga ou de um objeto que ela contenha afete o valor de outros volumes compreendidos no mesmo conhecimento aéreo, ou no mesmo recibo ou, se não houver sido expedido nenhum desses documentos, nos registros conservados por outros meios, mencionados no número 2 do Artigo 4, para determinar o limite de responsabilidade também se levará em conta o peso total de tais volumes.

5. As disposições dos números 1 e 2 deste Artigo não se aplicarão se for provado que o dano é resultado de uma ação ou omissão do transportador ou de seus prepostos, com intenção de causar dano, ou de forma temerária e sabendo que provavelmente causaria dano, sempre que, no caso de uma ação ou omissão de um preposto, se prove também que este atuava no exercício de suas funções.



Em sua redação, a própria Convenção clarifica e especifica seu escopo de atuação, quando às indenizações tarifadas, apenas nas avarias ligadas aos acidentes aéreos de navegação e não aos derivados de fatos culposos ou dolosos praticados pelos prepostos dos transportadores.

Por isso é que afirmamos um grande lugar-comum, um “topói jurídico” sobre o assunto, no qual as pessoas repetem erros sem prévia reflexão a respeito.

Isso se dê, talvez, pela redação menos feliz da Convenção de Montreal, que ingressou em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 5.910/2006, e manteve a indenização tarifada a valores praticamente irrisórios, colidindo com o princípio constitucional da reparação integral:


“3. No transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma quantia que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino.

Fica-nos cada vez mais evidente que a limitação de responsabilidade somente se justificaria se a situação do passado, a do tempo da elaboração da Convenção de Varsóvia, quando a aviação mundial tinha caráter quase amador, com poucos recursos tecnológicos e sem efetivos protocolos de segurança.

Fica-nos ainda mais evidente que, à sombra de qualquer exercício dialético-exegético, que ela, antes, como agora, só tem cabimento, a despeito da questão invencível da inconstitucionalidade, quando o nexo causal do sinistro for acidente aéreo e não simples negligência do transportador no manuseio e custódia das cargas.

O simples fato de a Convenção de Varsóvia e de Montreal terem ingressado no sistema jurídico brasileiro não justifica sua aplicação irrestrita e incondicional, sem o confronto com todo o acervo legal pátrio, sobretudo no que diz respeito à indenização tarifada, pois os valores fixados reduzem a quase nada o valor a ser indenizado, colidindo com o art. 944 do Código Civil, pois “A indenização mede-se pela extensão do dano”.

Parece-nos nada exagerado afirmar que a limitação tarifada, hoje, mais do que algo inconstitucional, é mesmo essencialmente imoral, um abuso de Direito, uma espécie de salvo-conduto às arbitrariedades por parte dos transportadores aéreos.

Um dos argumentos utilizados pelos defensores da aplicação da indenização tarifada é a literalidade do art. 750 do Código Civil, hábil para limitar a responsabilidade do transportador ao valor constante do conhecimento. Entretanto, ao contrário do que alegam os mesmos defensores, os transportadores aéreos, por meio dos mais diversos documentos e instrumentos, têm exata ciência do conteúdo e dos valores das cargas que transportam. De fato, até mesmo por questões de segurança e logística de transporte, as cargas são previamente declaradas em todas as suas especificidades, o que desarticula a equivocada invocação do referido artigo legal. Não se olvide, ainda, que o chamado frete “ad valorem”, jamais poderia ser a solução para aplicação do princípio da indenização tarifada, pois a indenização, como exposto antes, se mede pela extensão dos danos e dos prejuízos, não por declarações ou ausências destas relativamente aos valores.

A limitação de responsabilidade, além de tudo e repetimos propositadamente, agride a Constituição, que prevê a reparação civil ampla e integral como espécie de garantia fundamental, ao tempo em que não se justifica no atual estágio econômico e de modernidade da indústria aérea.

Vamos além: a indenização tarifada da Convenção Internacional viola também o Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal, cuja dicção é a seguinte: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

Ora, em termos práticos, limitar é praticamente o mesmo que não indenizar.

Uma vez que a limitação reduz sensivelmente o valor da indenização é perfeitamente possível afirmar que a indenização tarifada se ajusta perfeitamente ao conceito de cláusula de não indenizar, fazendo-se uso da boa hermenêutica jurídica e de interpretação sistêmica do Direito.

Seja pelo critério hierárquico normativo, estabelecido na Constituição Federal, ou até mesmo por critério de índole moral, uma vez que a limitação de responsabilidade configura verdadeira e imotivada causa “ilegal” de exclusão de responsabilidade, tem-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em diversas Turmas caminha firme no sentido de afastar definitivamente a limitação tarifada.

Tanto a limitação de responsabilidade quanto a indenização tarifada prevista no Código Brasileiro da Aeronáutica, outrossim, violam frontalmente o ordenamento jurídico brasileiro, principalmente o princípio da reparação integral (restitutio in integrum), pelo qual a parte deve ser restituída de qualquer diminuição em seu patrimônio causada por ato de outrem. Referido “Codex” ecoa em grande parte a Convenção de Varsóvia e o faz indevida e inoportunamente, ao arrepio de normas mais importantes e posteriores, como o Código Civil, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor e a própria Constituição Federal.

Afirmamos, pois, que as Convenções internacionais não podem instituir mecanismos legais de limitação, os quais tornam inócua uma dada indenização, principalmente em danos que não estão relacionados aos acidentes aéreos propriamente ditos, mas aos simples erros operacionais dos transportadores.

Não são poucos, pois, os argumentos e os fundamentos jurídicos e legais que inibem a aplicação da indenização tarifada em favor dos transportadores aéreos de cargas em questões relativas aos descumprimentos de obrigações contratuais de resultado, até para que não se tenha oposição ao princípio da indenização integral, cuja essência, aliás, tem status constitucional.

Por fim, lembramos que o que vale para o transporte aéreo de carga vale com igual ou maior razão para o transporte marítimo, não só porque os arquétipos de ambos são rigorosamente os mesmos, mas em homenagem ao dito raciocínio “a fortiori”. Ora, se a limitação de responsabilidade não cabe em um caso que é, bem ou mal, informado por Convenção Internacional (ainda que indevidamente interpretada e aplicada), com mais razão não o terá em um caso, o marítimo, despido de qualquer regramento legal ou convencional, no qual a limitação se invoca por meio de contrato de adesão, norma contratual imposta unilateralmente e de forma abusiva. Fazemos a lembrança porque a jurisprudência, pacífica, no Direito Marítimo, contrária à limitação de responsabilidade, em muito foi por nós utilizada na construção dos argumentos contrários à indenização tarifada convencional no transporte aéreo.

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado, professor de Direito, pós-graduado "lato sensu" em Direito e Mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, professor de Direito Marítimo do curso de Direito da Universidade Santa Cecília (Santos), professor/palestrante da Funenseg – Escola Nacional de Seguros, presidente do IBDTrans – Instituto Brasileiro de Direito dos Transportes, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo, membro efetivo da AIDA - Association Internationale de Droit des Assurances, do IBDP - Instituto Brasileiro de Direito Processual e da UJUCASP - União dos Juristas Católicos do Estado de São Paulo, Pós-graduado em Teologia (formação teológica com reconhecimento Pontifício) pela Pontifícia Faculdade de Teologia N.S. da Assunção, autor de livros e artigos, Comendador com a Insígnia da Ordem do Mérito Cívico e Cultural da Sociedade Brasileira de Heráldica e Humanística, Ecológica, Medalhística, Cultural, Beneficente e Educacional (Fundada em 13/3/1959) Oficializada pelo Governo Federal por meio do Ministério da Educação e Cultura pela Portaria 153 de 4 de junho de 1965, membro do conselho da Sociedade Visconde de São Leopoldo, mantenedora da Universidade Católica de Santos.

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Marcio Sebastião Aguiar

Advogado, especialista em Direito Marítimo e Portuário pela Universidade Católica de Santos, membro do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados, com atuação nos ramos de Direito do Seguro e Direito dos Transportes.

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Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique; AGUIAR, Marcio Sebastião. O transporte aéreo de carga e a limitação tarifada: um assunto ainda em discussão! A correta inteligência da decisão de repercussão geral do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5130, 18 jul. 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2017.


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