Receita muda tese sobre IRPF em licenciamento de "software de prateleira"
No dia 5 de abril de 2017, foi publicada a Solução de Divergência 18, através da qual a Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) da Receita Federal do Brasil (RFB) reformou entendimento proferido anteriormente relacionado à incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre remessas ao exterior envolvendo a licença de direitos de comercialização de software.
Em 2008, em função das divergências de interpretação no âmbito da própria RFB, foi emitida a Solução de Divergência Cosit 27, que determinou que “os valores remetidos ao exterior em pagamento pela aquisição ou pela licença de direitos de comercialização de software sob a modalidade de cópias múltiplas (software de prateleira)” não estariam sujeitas ao IRRF e à Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) de que trata a Lei 10.168/00.
Tal Solução de Divergência foi emitida à época para uniformizar o entendimento acerca da incidência de IRRF (e da CIDE) sobre pagamentos ao exterior envolvendo o licenciamento do denominado “software de prateleira” e foi pautada na interpretação dada em 1998 pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 176.626-3, onde se discutiu a incidência do ICMS na operação interna de licenciamento de software.
Naquela decisão, o STF fez uma distinção entre o “software de prateleira” (off the shelf) e o “software feito sob encomenda”, entendendo que o primeiro, por ser um software padrão, comercializado em larga escala para uma pluralidade de usuários seria equiparável à uma mercadoria para fins de incidência do ICMS. Já o “software feito sob encomenda” ou “à medida do cliente” não seria equiparável à mercadoria, por ser desenvolvido para atender necessidades específicas de um determinado usuário/cliente.
Assim, a RFB se baseou nesses conceitos dados pelo STF para proferir o entendimento exarado através da Solução de Divergência 27/08 de que não haveria incidência de IRRF no caso de remessas pela licença de direitos de comercialização de “software de prateleira”. A lógica desse entendimento é a de que nas situações em que o software tem a natureza de “mercadoria” (“software de prateleira”), o que se pagaria na operação de “aquisição”/licenciamento não teria a natureza de rendimento para fins de incidência do IRRF, mas de preço.
Pois bem. A recente publicada Solução de Divergência Cosit 18/17 reformou a Solução de Divergência Cosit 27/08, estabelecendo o seguinte:
“As importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a residente ou domiciliado no exterior em contraprestação pelo direito de comercialização ou distribuição de software, para revenda a consumidor final, o qual receberá uma licença de uso do software, enquadram-se no conceito de royalties e estão sujeitas à incidência de Imposto sobre a Renda na Fonte (IRRF) à alíquota de 15% (quinze por cento). SOLUÇÃO DE DIVERGÊNCIA QUE REFORMA A SOLUÇÃO DE DIVERGÊNCIA Nº 27, DE 30 DE MAIO DE 2008. Arts.1º e 2º da Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998; art. 7º, inciso XII, da Lei nº 9.610, de 2 de fevereiro de 1998; art. 710 do Decreto nº 3.000, de 26 de março de 1999.”
Dessa forma, de acordo com o novo entendimento da RFB, os valores devidos ao exterior relacionados ao licenciamento para comercialização ou distribuição de software caracterizam pagamento de royalties e, como tal, sujeitam-se à incidência do IRRF à alíquota de 15% nos termos do artigo 710 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/99), ainda que o software objeto da contratação tenha a natureza de “software de prateleira”.
A RFB se baseou em artigos da Lei 9.609/98 (Lei de Software) e da Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais) para distinguir os contratos de licença de uso de software dos contratos de licença de comercialização de software, justificando a mudança de entendimento no fato de que a decisão de 1998 do STF que fez a distinção entre o “software de prateleira” e o “software por encomenda” teria analisado apenas os contratos de licença de uso.
Na fundamentação apresentada na Solução de Divergência 18/17, a Cosit menciona que os contratos de licença de uso estão previstos no artigo 9º da Lei de Software, enquanto que os contratos de licença de comercialização estão previstos em seu artigo 10. Outra forma de contratação tendo o software como objeto é aquela que envolve a transferência de tecnologia (transferência do código-fonte, em especial) e, que por sua vez, está prevista no artigo 11 da Lei de Software.
No entendimento da Cosit, na relação entre a empresa estrangeira que detém os direitos de propriedade intelectual sobre o software e o “distribuidor”/“revendedor” no Brasil, haveria apenas a licença para comercialização. A contratação de uma licença de uso do software propriamente ocorreria apenas “no percurso entre o distribuidor ou revendedor e o cliente, ou seja, no momento em que o distribuidor ou revendedor fornece as licenças de uso de software a seus clientes”.
Cabe mencionar que a publicação da Solução de Divergência 18 se fez necessária em função da publicação da Solução de Consulta Cosit 154, de 18 de novembro de 2016.
O texto, ao analisar a incidência de IRRF em remessa pelo direito de duplicação e comercialização de software, a partir de uma fita master fornecida pelo seu autor, para revenda a cliente, entendeu que o valor devido se enquadra no conceito de royalties sujeito ao IRRF nos termos do artigo 710 do RIR/99. Reconhecendo que essa decisão estava em dissonância com o entendimento anterior contido na Solução de Divergência Cosit 27/08, a RFB resolveu reformar a decisão, emitindo a Solução de Divergência nº 18.
Esse novo entendimento da RFB, proferido através da Solução de Divergência 18, apesar de estar bem fundamentado nas disposições legais que regulam os contratos envolvendo o uso e licenciamento de software, pode ser objeto de debates e raciocínios.
Se é possível entender que na licença de uso do “software de prateleira” a cliente/consumidor final, o software tem a natureza de mercadoria, porque o mesmo entendimento não poderia ser aplicado na licença de comercialização do software entre o licenciante no exterior e a “distribuidora”/“revendedora” no Brasil?
Possivelmente, se esta pergunta fosse direcionada ao Fisco, o mesmo argumentaria que a “aquisição” do “software de prateleira” se daria apenas na relação com o usuário efetivo do software (consumidor/ cliente) e que a empresa brasileira que recebe a licença para comercialização do software não “adquire” propriamente o software, mas apenas recebe o direito de comercializá-lo.
Todavia, pode-se pensar também que, diante de sua natureza de obra intelectual protegida pelas normas de direitos autorais, o software licenciado não é de fato “adquirido” pelo consumidor/cliente. E se é possível aplicar nessa relação de licenciamento de uso entre o “distribuidor”/“revendedor” (autorizado a sublicenciar o software) e o consumidor/cliente, a ficção jurídica de que o que se está transacionando seria uma “mercadoria” objeto de compra e venda (raciocínio do STF no RE 176.626-3), por que a mesma ficção jurídica não poderia se aplicar na relação entre o licenciante no exterior e a licenciada (“distribuidor” / “revendedor”) no Brasil? Afinal, em ambos os casos, nos termos da Lei de Software, a forma de contratação se dá através de uma licença.
De todo modo, cabe lembrar que as Soluções de Divergência da Cosit tem efeito vinculante no âmbito da RFB, devendo obrigatoriamente ser observadas pelos seus auditores fiscais. Assim, não obstante seja sempre possível discutir administrativamente ou judicialmente a matéria, é fato de que diante desse novo posicionamento da RFB, a ausência de recolhimento do IRRF sobre as remessas a título de direitos de comercialização de “software de prateleira” implicará riscos de autuação fiscal.
Finalmente, cabe comentar que a reforma da Solução de Divergência 27/08 não traz implicações em relação à não incidência da CIDE sobre os valores devidos ao exterior pela licença de uso ou de direitos de comercialização ou distribuição de software, que advém de lei (§ 1º-A, do art. 2º da Lei 10.168/00, incluído pela Lei 11.452/07). A CIDE continua sendo devida apenas nos contratos que envolverem a transferência da tecnologia (código-fonte).
Camilla Pardini é advogada, sócia júnior de Direito Tributário do Demarest e Almeida Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 16 de abril de 2017, 11h07
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