Aumento de PIS/Cofins de combustíveis por decreto é inconstitucional
O Brasil todo foi pego de surpresa com o Decreto 9.101, de 20 de julho
de 2017, pelo qual houve considerável aumento do preço dos combustíveis,
através da alteração das alíquotas das contribuições para o PIS/Pasep e Cofins.
É possível, nos termos da nossa Constituição Federal o aumento de
tributo através de decreto?
I – O princípio da legalidade tributária.
O artigo 150 da Constituição Federal que trata das limitações do poder de tributar, prevê, em seu inciso I, dentre outras garantias que é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.
O artigo 150 da Constituição Federal que trata das limitações do poder de tributar, prevê, em seu inciso I, dentre outras garantias que é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.
Por se tratar de uma garantia constitucional, o dispositivo deve receber
a interpretação que lhe dê a maior eficácia possível, portanto, a vedação
alcança tanto o aumento direto como o indireto.
O princípio da legalidade tributária tem sua origem na Magna Carta de
João Sem Terra, de 1215, pela qual ficou previsto que o Monarca não
poderia instituir tributos sem a autorização do Conselho Geral, ou seja, os
tributos só poderiam ser instituídos com a autorização do Conselho. Desse
preceito vem o célebre adágio “no taxation without representation”
(nenhuma tributação sem representação), ou seja, que não se pode estabelecer
mais tributos que os votados pelos representantes do povo. Esse é um dos
princípios básicos do constitucionalismo moderno.[1]
Daí surge o princípio da auto tributação, que significa dizer que é o
povo que auto se tributa, e o princípio da legalidade nada mais é do que o povo
se tributando através de seus representantes.
Um retrocesso nesse sentido seria a volta de uma situação que ficou superada
há mais de 800 anos.
O princípio da legalidade tributária, em nosso ordenamento jurídico, tem
uma característica especial, é denominado princípio da estrita legalidade.
Pelo princípio da estrita legalidade, devem estar previstos na lei todos
os critérios da norma jurídica tributária, quais sejam o material, temporal,
espacial, contidos na hipótese de incidência, como o pessoal e o quantitativo,
neste estando incluído a alíquota; contidos na consequência tributária.[2]
Como se vê, o princípio da legalidade, em direito tributário é mais
rigoroso do que o princípio da legalidade em sentido lato, previsto no
artigo 5º, II da CF, portanto, merece um cuidado todo especial, pois todos
os requisitos para a instituição ou aumento de um tributo devem estar previstos
em lei. Pelo princípio da estrita legalidade não é possível exigir-se ou
aumentar-se um tributo com base na analogia. É o que se extrai do
artigo 108, § 1º do Código Tributário Nacional. Assim como não há crime
por analogia, não se pode exigir ou aumentar tributo invocando analogia.
II – Das exceções ao princípio da estrita legalidade.
A regra geral é a observância estrita do princípio da legalidade, inclusive para as contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como preceitua o artigo 149 da CF.
A regra geral é a observância estrita do princípio da legalidade, inclusive para as contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como preceitua o artigo 149 da CF.
Todavia, a Constituição Federal traz algumas exceções a esse princípio,
quais sejam:
a) Artigo 153 § 1º da CF: “É
facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos
em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I [importação
de produtos estrangeiros], II [exportação, para o exterior, de produtos
nacionais ou nacionalizados], IV [produtos industrializados] e V [operações de
crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários].” É o
que se convencionou denominar de “legalidade aparente”.
b) A segunda
exceção está contida no artigo 177, § 4º, I, “b” da CF, que se refere a
contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE). Diz o texto
constitucional: “A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio
econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e
seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá
atender aos seguintes requisitos: I – a alíquota da contribuição poderá ser: a)
diferenciada por produto ou uso; b) reduzida e estabelecida por ato do
Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no artigo 150, III, b;
c) A terceira refere-se ao artigo
155, § 4º, IV da CF que permite aos Estados e Distrito Federal definir as
alíquotas do ICMS monofásico incidente sobre combustíveis, através de convênio
específico.
d) Ainda o artigo 97, § 2º do Código
Tributário Nacional prevê que “não constitui majoração de tributo, para fins do
disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da
respectiva base de cálculo; e, finalmente,
e) Em caso de relevância e urgência,
as medidas provisórias (artigo 62 § 2º da CF.)
Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, ou seja, não
podem ser aplicadas por analogia. Não há exceção em relação as contribuições
sociais PIS/Pasep e Cofins, ou seja, em relação a elas aplica-se, de forma
irrestrita, o princípio da legalidade tributária.
III – Dos tributos sobre os combustíveis.
Incidem sobre os combustíveis o ICMS, a contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE), e as contribuições sociais PIS/Pasep e Cofins.
Incidem sobre os combustíveis o ICMS, a contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE), e as contribuições sociais PIS/Pasep e Cofins.
O ICMS é um imposto estadual; as CIDE é uma contribuição de intervenção
no domínio econômico. Já a Cofins é uma contribuição para o financiamento da
seguridade social, prevista no artigo 195, I, b da CF. e o PIS/Pasep é uma
contribuição social para financiar o programa do seguro-desemprego e o abono de
que trata o § 3º do artigo 239 da CF.
Não se confunde a CIDE, que foi instituída com a finalidade de assegurar
um montante mínimo de recursos para investimento em infraestrutura de transporte,
em projetos ambientais relacionados à indústria do petróleo e gás, e em
subsídios ao transporte de álcool combustível, de gás natural e derivados, e de
petróleo e derivados, com as contribuições sociais
Não há, portanto, de aplicar-se a exceção prevista para a CIDE, no
artigo 177, § 4º, I, “b” da CF, para as contribuições sociais PIS/Pasep e
Cofins, pois as exceções, como já se disse, devem ser interpretadas
restritivamente.
IV – Das Leis 9.718, de 27 de novembro de 1988 e 10.865, de 30 de abril
de 2004.
Ambas as leis tratam das contribuições sociais mencionadas e trazem, em seu bojo, nos artigos 5º § 8º e 27 § 2º, a faculdade do Poder Executivo reduzir e restabelecer as respectivas alíquotas. Entretanto essa faculdade não tem amparo constitucional, portanto, é inválida, pois toda a norma que não está em harmonia com a Constituição Federal é de nenhum valor.
Ambas as leis tratam das contribuições sociais mencionadas e trazem, em seu bojo, nos artigos 5º § 8º e 27 § 2º, a faculdade do Poder Executivo reduzir e restabelecer as respectivas alíquotas. Entretanto essa faculdade não tem amparo constitucional, portanto, é inválida, pois toda a norma que não está em harmonia com a Constituição Federal é de nenhum valor.
Cabe aqui relembrar o disposto no artigo 3º, 3 da Constituição de
Portugal, nossa “constituição mãe”, que diz: a validade das leis e dos demais
atos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras
entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.
Por outro lado, não se sustenta o argumento de que não se trata de uma
majoração tributária por decreto, eis que houve apenas uma revogação de
benefício. É evidente que houve um aumento da carga tributária e esse aumento,
ainda que seja de forma indireta, exige a observância do princípio da
legalidade.
V – Da jurisprudência.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da matéria no Recurso Extraordinário 986.296 Paraná, da relatoria do ministro Dias Toffoli.[3]
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da matéria no Recurso Extraordinário 986.296 Paraná, da relatoria do ministro Dias Toffoli.[3]
Em sua manifestação, disse o ministro:
É de se fixar orientação sobre a
possibilidade de o artigo 27, § 2º, da Lei 10.865/2004 transferir a regulamento
— portanto, a ato infralegal — a competência para reduzir e restabelecer as
alíquotas da contribuição ao PIS e da Cofins. A matéria é similar à discutida
na ADI 5.277/DF, de minha relatoria, de modo que entendo estarem presentes
a densidade constitucional e a repercussão geral.
Diante do exposto,
manifesto-me pela existência de repercussão geral da questão constitucional
suscitada, submetendo-a à apreciação dos demais Ministros desta Corte.
Brasília, 10 de fevereiro de 2017.
Brasília, 10 de fevereiro de 2017.
O argumento apresentado no acórdão recorrido, que entendeu pela não
violação do princípio da legalidade, invoca argumentos que seriam aceitos, como
já se disse, no caso da CIDE, e não em relação às contribuições sociais
PIS/Pasep e Cofins.
Na ADI 5.277/DF, ainda não julgada, mas na qual o procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, já emitiu parecer, do qual se destaca:
O princípio da legalidade tributária,
por constituir direito fundamental do cidadão-contribuinte, somente pode ser
restringido ou mitigado pela própria Constituição, ou por lei (com ou sem
reservas), quando expressamente autorizada pelo texto constitucional.
O artigo 153, § 1º, da CR autoriza o
Executivo, por ato próprio (infralegal), a alterar as alíquotas do imposto de
importação (II), do imposto de exportação (IE), do imposto sobre produtos
industrializados (IPI) e do imposto sobre operações financeiras (IOF). A
autorização não é irrestrita e deve observar o elemento quantificativo da
hipótese de incidência tributária estabelecido em lei. Embora possam ser
alteradas as alíquotas dos impostos descritos no artigo 153, § 1º, da CR por
ato infralegal do Executivo, cabe à lei descrever as alíquotas mínima e máxima
desses tributos.
Há duas outras
exceções ao princípio da legalidade tributária, introduzidas pela Emenda
Constitucional 33, de 11 de dezembro de 2001: (i) redução ou restabelecimento,
por ato infralegal, das alíquotas da CIDE-combustível fixadas em lei (CR,
artigo 177 § 4º, I, b) e (ii) definição, redução e restabelecimento de
alíquotas do ICMS incidente em etapa única (monofásica) sobre combustíveis e
lubrificantes definidos em lei complementar, mediante convênio interestadual
(CR, artigo 155, § 2º, XII, h, e § 4º, IV, c).
....
....
São taxativas as hipóteses
constitucionais que excepcionam do princípio da legalidade estrita a alteração
das alíquotas definidas em lei, não justificando inobservância delas nem mesmo
a extrafiscalidade de certos tributos.
Esclarece Roque
Antonio Carraza:
Resta evidente, portanto, que o Executivo não poderá apontar — nem mesmo por delegação legislativa — nenhum aspecto essencial da norma jurídica tributária, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
Resta evidente, portanto, que o Executivo não poderá apontar — nem mesmo por delegação legislativa — nenhum aspecto essencial da norma jurídica tributária, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
Não discrepa desta linha
Paulo de Barros Carvalho: “Assinale-se que à lei instituidora do gravame é
vedado deferir atribuições legais a normas de inferior hierarquia, devendo, ela
mesma, desenhar a plenitude da regra matriz da exação, motivo por que é
inconstitucional certa prática, cediça no ordenamento brasileiro, e consistente
na delegação de poderes para que órgãos da administração completem o perfil dos
tributos.”[4]
Na sequência, conclui que:
O artigo 5º, §§ 8º a 11, da Lei
9.718, de 27 de novembro de 1998, incluídos pela Lei 11.727, de 23 de junho de
2008, violou o princípio da legalidade tributária e opina pela procedência do
pedido.
Essa manifestação do procurador-geral da República não deixa dúvidas a
respeito da inconstitucionalidade da alteração da alíquota, por decreto, das
mencionadas contribuições sociais, uma vez que o constituinte a isso não
autorizou o Poder Executivo.
VI – Conclusões
a) O princípio da legalidade remonta
à Carta Magna de 1215.
b) Foi consagrado na Declaração de
Direitos, do ano de 1789 e atualmente vem estampado em praticamente todas as
cartas Políticas existentes.
c) O princípio da legalidade,
inserido no artigo 150, I da Constituição Federal, refere-se à legalidade
estrita, pela qual todos os elementos que compõem a norma jurídica tributária
devem estar expressos da lei, inclusive a alíquota.
d) O princípio da legalidade é um
direito fundamental.
e) O princípio da legalidade comporta
algumas exceções, previstas na Constituição nos artigos 153, § 1º, 177, §
4º, I, b e 155, § 2º, XII, h, e § 4º, IV, c, mas nenhuma delas se refere às
contribuições sociais PIS-Pasep e Cofins.
f) Em direito tributário não se
aplica a analogia para instituir ou aumentar tributos.
g) As exceções ao princípio da
legalidade tributária são só aquelas previstas na Constituição Federal.
h) A alteração das alíquotas das
contribuições sociais PIS-Pasep e Cofins, por decreto, é inconstitucional.
Referências bibliográficas.
ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista eletrônica de direito Administrativo Econômico, n. 12, nov-dez-jan. 2008.
ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista eletrônica de direito Administrativo Econômico, n. 12, nov-dez-jan. 2008.
BERNARDI, Renato. O princípio da legalidade no Direito Tributário. In:
“Ambito Jurídico. Rio Grande, 45, 30/09/2007.
CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 26.
Ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 27 ed. São Paulo
: Saraiva, 2016.
CORDEIRO, Rodrigo Aiache. O princípio da legalidade tributária. Boletim
Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, n. 184.
[1] Embora o
insigne doutrinador Victor Uckmar atente para a existência de diversos fatos
tendentes a crer que o Princípio da Legalidade remonta a ´épocas anteriores, o
certo é que o início da utilização da legalidade como regra jurídica escrita –
e, também, na acepção clássica “de que o sujeito do ônus
[2] Neste mesmo
sentido, BERNARDI, Renato. O princípio da legalidade no Direito Tributário. In:
Âmbito Jurídico, Rio Grande, 45, 30/09/2007 [Internet]. Disponível em http://www.ambito-jurídico.com.brlink=revista_artigos_leitura&artigo_id=3346.
Acesso em 31/07/2017.
[3] EMENTA.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. PIS E COFINS. LEI Nº 10.865/2004.
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. DECRETO Nº 8.426/2015. REDUÇÃO E RESTABELECIMENTO DE
ALÍQUOTAS.
[4] CARRAZA,
Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 26. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 264-268.
Jorge de Oliveira Vargas é desembargador do
Tribunal de Justiça do Paraná; mestre e doutor em Direito Público pela
Universidade Federal do Paraná; professor da UTP, Unibrasil, Opet, Emap e
membro da Academia Paranaense de Letras jurídicas.
David Willian Peixoto é acadêmico de Direito na UTP, monitor e
assessor no TJ-PR.
Revista Consultor Jurídico, 22 de agosto de 2017, 6h01
http://www.conjur.com.br/2017-ago-22/opiniao-aumento-piscofins-decreto-inconstitucional
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