A
irregularidade na cobrança do AFRMM sob a ótica do Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio (GATT)
* escrito por André Silva da
Cruz no site Comexblog
A instituição do AFRMM,
praticamente eternizada desde a década de 50, está, de certa forma, intrincada
com a política macroeconômica brasileira de apregoar melhorias no saldo do nosso
balanço de pagamentos, tendo instaurado-se como instrumento de valorização do
transporte marítimo de bandeira nacional, segundo a premissa de que, quanto
maior a frota naval de um país, menores serão seus recursos consumidos com
fretes e armadores estrangeiros.
Muito embora não disponha de
marinha mercante, visto que o comércio marítimo brasileiro ainda depende, em
essência, do uso de navios estrangeiros, o referido tributo vem sendo cobrado
desde então e com o estabelecimento da Lei 10.893/04, ganhou ainda mais força,
revigorada com a publicação da MP Nº 545/11 que transferiu da Marinha Mercante
para a RFB toda a responsabilidade pela matéria
A cobrança do referido tributo
onera de forma significativa as importações brasileiras, além de tornar alguns
processos de desembaraço extremamente morosos ao passo que quando se realiza
importações de países com os quais o Brasil mantém acordo comercial, há a
possibilidade de se pleitear a sua isenção, o que faz com que alguns
importadores acabem abrindo mão dessa isenção face à burocracia do
processo.
O estabelecimento da nova
conjuntura mundial, que cria relações cada vez mais estreitas entre os atores
internacionais, faz com que cada vez mais empresas se estabeleçam em outros
países, que cada vez mais negócios sejam realizados ao redor do mundo. É a era
da globalização que provoca a materialização das citadas relações, por meio de
tratados internacionais, cujo objetivo é regular uma série de questões,
inclusive as de natureza tributária.
Segundo Francisco Rezek em sua
obra: Direito Internacional Público,
2002 o tratado é todo acordo
formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, e destinados a
produzir efeitos jurídicos. Em complemento ao acima exposto, um dos mais
importantes documentos sobre o Direito dos Tratados é a Convenção de Viena de
1969, que em seu Art. 2º estabelece que o tratado tem como princípio o livre
consentimento entre as partes do Direito Internacional
Diante do exposto, o objetivo
desse artigo é resgatar o fato de que, o Brasil, na condição de país signatário
do acordo geral sobre tarifas e comércio (GATT), acordou, juntamente com os
demais membros, que asseguraria a transparência no caso de implementação dos
direitos e obrigações derivados do parágrafo 1(b) do Artigo II, por meio da
inclusão dos referidos direitos, nas listas de concessões anexadas ao GATT
94.
Como se pode extrair da leitura
do texto do parágrafo supramencionado:
“Os produtos das Partes
Contratantes, ao entrarem no território de outra Parte Contratante, ficarão
isentos dos direitos aduaneiros ordinários que ultrapassarem os direitos fixados
na Parte I da lista das concessões feitas por esta Parte Contratante, observados
os termos, condições ou requisitos constantes da mesma lista. Esses produtos
também ficarão isentos dos direitos ou encargos de qualquer natureza, exigidos
por ocasião da importação ou que com a mesma se relacionem e que ultrapassem os
direitos ou encargos em vigor na data do presente Acordo ou os que, como
conseqüência direta e obrigatória da legislação vigente no país importador, na
referida data, tenham de ser aplicados ulteriormente.”
Quer dizer, se estarão isentos
os direitos ou encargos de qualquer natureza relacionados com a importação que,
por ventura não estejam relacionados na lista de concessões do acordo, e é
sabido que a alíquota do AFRMM não está. Logo, tem-se por óbvio que há
irregularidade na cobrança do tributo em questão.
O processo legislativo que
abarca a internalização de um tratado consiste em duas fases internacionais
(assinatura e ratificação) e duas internas (o referendo do congresso nacional e
a promulgação do decreto pelo presidente da república) vide Art. 84º, IV e 49º,
I da Constituição Federal. Esse é o ato de natureza jurídica interna,
instrumento que visa à publicidade do mesmo e pelo qual se permite ao tratado
incorporar o Direito positivo brasileiro.
Feitos esses apontamentos,
ressalta-se que o Código Tributário Nacional (CTN), em seu Art. 98 dispõe que os
tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação
tributária interna, e serão observados pela que lhes
sobrevenha.
Portanto, considerando que a lei
10.893/04 que estabelece e dispõe sobre o AFRMM, trata-se de Lei Ordinária de
Direito interno e institui a aplicação de um tributo que, de acordo com o
conceito do parágrafo
1(b) do Art. II do GATT, deveria
compor a lista de concessões do referido acordo para que fosse devidamente
implementada, pode-se extrair dessa análise, o entendimento de que a norma
interna estaria sobrepujando o tratado internacional sobre comércio e
tarifas.
A cobrança do AFRMM não é
considerada irregular por ser inconstitucional como já fora abordado em outras
discussões, até mesmo porque o STF já se posicionou a acerca dessa celeuma e a
questão já está mais do que sacramentada.
A argumentação aqui proposta tem
por finalidade demonstrar que, seja o AFRMM ou fosse outra espécie tributária
cobrada nas importações sem que tivesse sido devidamente acordada entre os
países membros da OMC, a referida cobrança deveria ser considerada absolutamente
indevida por configurar-se uma tarifação adicional e ferir o princípio da
transparência e consistência na aplicação de medidas tarifárias ou não
tarifárias, aplicadas na fronteira ou internamente.
Também não é fruto dessa
argumentação a idéia de que as empresas deveriam correr ao judiciário com o
intuito de tentar reverter tal situação, o que muito provavelmente não iria
ocorrer, trata-se sim de uma discussão sadia em prol da verdade, além de uma
demonstração da forma como a transparência na aplicação dos tratados
internacionais é tida em nosso país.
Vale lembrar também que o Art.
27º da Convenção de Viena de 1969 deixa clara a impossibilidade dos Estados
Partes utilizarem as leis internas de seus países como subterfúgio para evitar o
cumprimento de um tratado internacional, ou seja, caso essa fosse uma primazia
em nosso país, o AFRMM estaria suspenso até que fosse devidamente regularizada a
sua situação perante as regras da Organização Mundial do
Comércio.
* André Silva da Cruz é
administrador, especialista em assuntos regulatórios e aduaneiros, possui MBA em
Finanças e em Negócios Internacionais.
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