REDUÇÕES DO IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO PARA O SETOR AUTOMOTIVO
É auspiciosa a previsão de fabricação de 3,5 milhões de veículos no Brasil, seja em 2010 ou em ano próximo, e credencia nosso país como um dos principais fabricantes mundiais. O crescimento da produção das indústrias do Setor Automotivo aos patamares atuais premia as iniciativas de planejamento e investimentos no parque industrial decorrentes de programa legislativo.
No presente artigo, trataremos dos regimes especiais de tributação do Imposto de Importação concedidos ao Setor Automotivo nos últimos 15 anos, para explicar a situação atual de convivência da Lei nº 10.182/01 e ACE 14-38 e demonstrar que atualmente a mesma empresa pode ser habilitada aos dois regimes ao mesmo tempo.
Do contexto histórico
O "Regime Automotivo" - instituído pelo governo federal entre 1995 e 1999, veiculado pela Medida Provisória nº 1.024/95, convertida após reedições à época permitidas na Lei nº 9.449/97 - reduziu a tributação incidente sobre a importação de bens de capital e produção, incentivando e permitindo a instalação no Brasil de diversas novas montadoras de veículos e fabricantes de autopeças, além da expansão da capacidade produtiva das indústrias existentes. Ao final do ciclo virtuoso de investimentos, foi mantida a redução de 40% do Imposto de Importação incidente sobre a nacionalização de partes, peças e componentes utilizados na fabricação de veículos e autopeças. Essa redução de 40% do Imposto de Importação foi veiculada pela Medida Provisória nº 1.939-24, de 6 de janeiro de 2000, e reedições, culminando em conversão na Lei nº 10.182/01.
A permanência pós-Regime Automotivo da redução de 40% do Imposto de Importação na nacionalização de componentes utilizados no Brasil para fabricação de produtos automotivos afrontou a Argentina, pela existência da Política Automotiva Comum Brasil e Argentina, negociada pelo Acordo de Complementação Econômica nº 14 (ACE 14). Para eliminar a animosidade entre os países, o Trigésimo Primeiro Protocolo Adicional ao ACE 14 - assinado pelos Plenipotenciários do Brasil e da Argentina aos 11 de novembro de 2002, cuja execução no Brasil foi estabelecida pelo Decreto nº 4.510, de 11 de dezembro de 2002 - dispunha que a redução de 40% seria gradualmente eliminada no Brasil até sua totalidade no ano de 2005 [1].
Contudo, apesar da disposição de eliminação da redução de 40% pelo Tratado Internacional e Decreto Presidencial, continuou a ser aplicada nas importações dos fabricantes de produtos automotivos. Somente em outubro de 2005 surgiu uma norma da Receita Federal do Brasil (RFB), a Notícia Siscomex 54/05, que interrompeu a aplicação da redução do Imposto de Importação entre os meses de outubro de 2005 e março de 2006. Depois desse período, a RFB, motivada por decisões judiciais [2], constatou que seu entendimento era equivocado, pois o Tratado Internacional não adquirira eficácia no ordenamento jurídico brasileiro [3].
A solução ao impasse criado pela latente antinomia entre a Lei nº 10.182 e o ACE 14-31 foi implantada pela RFB, com a publicação do Ato Declaratório Executivo nº 1, de 24 de fevereiro de 2006 (ADI 1/06). Considerando que o ACE 14-31, além de vedar a continuidade de fruição da redução de 40% do Imposto de Importação, estatuiu pelo artigo 10 um regime especial de incidência do Imposto de Importação à alíquota fixa de 8%, para os fabricantes de máquinas agrícolas e rodoviárias, o ADI 1/06 declarou em seu artigo 1º a validade desse regime para as empresas nele habilitadas:
"Art. 1º - A aplicação dos Trigésimo e Trigésimo Primeiro Protocolos Adicionais ao Acordo de Complementação Econômica nº 14, celebrado entre os Governos da República Federativa do Brasil e da República Argentina, de que tratam os Decretos nº 3.816, de 15 de outubro de 2001, e nº 4.510, de 11 de dezembro de 2002, relativamente às alíquotas do Imposto de Importação fixadas, alcança apenas as pessoas jurídicas habilitadas ao regime de importação por eles estabelecidos, e exclui a aplicação das normas estabelecidas na Lei nº 10.182, de 12 de fevereiro de 2001."
O artigo primeiro do ADI 1/06 permitiu a fruição do regime do ACE 14-31 para as empresas nele habilitadas, restando ao segundo e último artigo declarar a validade da redução de 40% do Imposto de Importação para as empresas habilitadas nesse Regime:
"Art. 2º - As pessoas jurídicas não habilitadas ao regime referido no art. 1º sujeitam-se às normas estabelecidas nos art. 5º e 6º Lei nº 10.182, de 12 de fevereiro de 2001, se habilitadas na forma por ela estabelecida, ou às normas gerais de importação em vigor à época dos fatos geradores."
Dessa forma, embora o ACE 14-31 não tivesse adquirido plena validade no ordenamento jurídico brasileiro, ao ponto de sobrepor a Lei nº 10.182/01, foi criada uma sistemática pela qual o importador optaria pelo regime que lhe fosse mais favorável, prescindindo da aplicação do outro. O entendimento vigente na RFB e na Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) é que ao se tratar de norma mais favorável o ACE 14-31 e em havendo manifestação do importador para se habilitar no mesmo, poderia ser aplicado o Tratado Internacional, a despeito de não ter sido submetido ao referendo do Congresso Nacional [4].
Diante desse entendimento, começaram a conviver paralelamente os dois regimes especiais de incidência do Imposto de Importação: (i) o regime de incidência do Imposto de Importação com alíquota fixa de 8% para a montagem de máquinas agrícolas e rodoviárias e (ii) o regime de redução de 40% do Imposto de Importação para o restante do Setor Automotivo, montadoras e fabricantes de conjuntos automotivos e autopeças. Conviveram mesmo paralelamente, não tendo os Regimes se encontrado: em razão da restrição presente no ACE 14-31, contrária à validade da Lei nº 10.182/01, o importador deveria optar por um dos dois regimes.
Da situação atual
De 2006 até os dias atuais a situação se alterou nas duas frentes.
A Lei nº 10.182/01 foi alterada pela Medida Provisória nº 497/10, que, em sendo convertida em lei dentro de seu prazo de validade no final do mês de novembro de 2010, irá eliminar o redutor de 40% do Imposto de Importação para o Setor Automotivo até o final do mês de abril de 2011. Atualmente, essa Medida Provisória restringiu a redução do Imposto de Importação para 30% até o final do mês de outubro de 2010 e a redução passará a 20% de novembro de 2010 a abril de 2011, quando será extinta.
Também o ACE 14 foi alterado. Hoje em dia é válido o Trigésimo Oitavo Protocolo Adicional, assinado em 23 de junho de 2008, cuja redação provê significativas mudanças ao panorama até aqui narrado. Após negociações e entendimentos entre os governos do Brasil e da Argentina, foi decidido relevar as assimetrias existentes na legislação interna de cada país, tratando-as como "preferências transitórias" [5]. Dessa forma, o ACE 14-38 não somente retirou a restrição ao redutor do Imposto de Importação previsto na Lei nº 10.182/01, como também previu expressamente a sua validade.
Outra mudança promovida pelo ACE 14-38 foi permitir que a alíquota fixa de 8% do Imposto de Importação, aplicável para as importações dos fabricantes de máquinas agrícolas e rodoviárias, fosse aplicada também nas importações cursadas por fabricantes de conjuntos e subconjuntos destinados à fabricação dos veículos com funções agrícolas e rodoviárias.
Além disso, o ACE 14-38 manteve o regime especial para "importação de autopeças não produzidas no Mercosul para produção", que já era previsto em protocolos adicionais anteriores, como o 31º Protocolo Adicional, aqui comentado. O regime reduz para 2% a alíquota do Imposto de Importação de autopeças não fabricadas no Mercosul. Esse instituto já é popular na Argentina, tendo havido a publicação de listas positivas para aplicação desse tratamento excepcional em 2004 (Resolución 497 da Secretaría de Industria, Comercio y de la Pequeña y Mediana Empresa) e 2005 (Resolución 6) [6] e possivelmente outras atualizações.
No Brasil, o instituto não havia sido regulamentado com a lista de exceções até recentemente. Apenas com a publicação da Resolução Camex nº 71, em 14 de setembro de 2010, foi veiculada a lista de autopeças não fabricadas no Mercosul, com base nas sugestões apresentadas pela Anfavea e Sindipeças. Essa lista elenca 116 autopeças que poderão ser importadas com a alíquota de 2% "na condição de ex-tarifários específicos para o presente regime", conforme estabelecido pelo artigo 1º da Resolução Camex nº 71/10.
Pelo exposto, percebemos que atualmente existem três regimes para recolhimento do Imposto de Importação na nacionalização de autopeças para produção:
- redução do Imposto de Importação da Lei nº 10.182/01 - redução de 20% de novembro de 2010 a abril de 2011;
- alíquota fixa de 8% do Imposto de Importação para a nacionalização de autopeças destinadas à montagem de máquinas agrícolas e rodoviárias e conjuntos e subconjutos destinados às mesmas - fixada pelo ACE 14-38; e
- alíquota de 2% do Imposto de Importação para a nacionalização de autopeças sem similar nacional listadas na Resolução Camex nº 71/10 - fixada pelo ACE 14-38.
A maior parte das empresas do Setor Automotivo que importam componentes é habilitada no regime da Lei nº 10.182/01, fundamento de redução 96, conforme o código do Siscomex. Para fruição dos regimes estabelecidos pelo ACE 14-38, alíquota fixa de 8% para agrícolas e rodoviários e alíquota de 2% para autopeças sem similar nacional, deverão habilitar-se no ACE 14-38, sob o fundamento de redução 97, conforme o código do Siscomex.
Ocorre que existe um posicionamento do governo de que a empresa deverá solicitar sua desabilitação do fundamento 96 para ser habilitada no fundamento 97. Esse entendimento é pautado em ato normativo do MDIC que determina que "os tratamentos fiscais previstos no 'Acordo Bilateral' para a importação de autopeças de extrazona não poderão ser usufruídos cumulativamente com outros de mesma natureza".
É importante conferir a correta interpretação ao dispositivo: não é proibida a habilitação da mesma empresa nos dois regimes, dos fundamentos 96 e 97, mas sim que no mesmo processo de importação sejam aplicados cumulativamente os dois tratamentos (por exemplo: aplica-se a redução de 20% sobre autopeça sem similar nacional tributada a 2%, resultando na alíquota de 1,60%). Dessa forma, poderá a mesma empresa utilizar os três regimes em processos distintos, da seguinte maneira:
- redução de 20% do Imposto de Importação da Lei nº 10.182/01 - quando importar autopeças que tenham similares produzidos no Mercosul e que sejam destinadas a produtos automotivos que não sejam máquinas agrícolas ou rodoviárias;
- alíquota fixa de 8% fixada pelo ACE 14-38 - quando importar autopeças destinadas à montagem de máquinas agrícolas e rodoviárias e conjuntos e subconjuntos destinados às mesmas; e
- alíquota de 2% do Imposto de Importação fixada pelo ACE 14-38 - quando importar autopeças sem similar nacional listadas na Resolução Camex nº 71/10 para qualquer um dos mercados.
Para que possam as empresas fruir desses regimes, deverá a Secex autorizar a habilitação da mesma empresa nos fundamentos 96 e 97 conjuntamente. A restrição para que a mesma empresa utilize a Lei nº 10.182/01 e o ACE 14, que havia no 31º Protocolo Adicional, não existe no 38º Protocolo Adicional, e ao concluir dessa forma estaria o intérprete fazendo uma distinção que a norma não faz, o que é vedado. Nessa linha, o ADI 1/06 é parcialmente revogado no que tange à restrição de convivência pacífica dos dois regimes.
Essa matéria, se há a possibilidade legal de uma empresa estar habilitada a dois regimes conjuntamente, está sob análise do Conselho Jurídico (Conjur) do MDIC, cabendo aos interessados exporem fundamentos jurídicos que facilitem a correta interpretação do conjunto normativo pelo Ministério.
Conclusões
O Imposto de Importação é um tributo com característica extrafiscal, o que significa dizer que sua função principal é o controle da economia e não a arrecadação tributária. Em se tratando o Setor Automotivo do mais forte segmento industrial do Brasil, está certo o governo federal ao conceder estímulos fiscais para seu desenvolvimento.
O magnífico momento vivido pelas indústrias fabricantes de produtos automotivos no Brasil justificam iniciativas adotadas há mais de 15 anos. Para continuarmos vivenciando o ciclo virtuoso, que engloba o Setor Automotivo e todos os outros setores econômicos que o cercam, é necessário que o governo federal continue favorecendo os projetos industriais desenvolvidos no Brasil.
Autor: ALEXANDRE LIRA DE OLIVEIRA
Advogado pós-graduado em Direito Tributário, com especialização em comércio exterior.
Notas:
[1] O 30º PA ao ACE 14, assinado por Brasil e Argentina, em 1º de agosto de 2000, já previa a eliminação do redutor de 40% do Imposto de Importação no Brasil.
[2] Vide, por exemplo, o processo 2005.03.00.098497-4 AG 256363 do TRF 3ª Região, patrocinado pelos advogados Francisco Antonio D'Angelo e Alexandre Lira de Oliveira.
[3] Sobre o procedimento de recepção de Tratado Internacional ao ordenamento jurídico vide artigo de 12/05/2006: OLIVEIRA, Alexandre Lira de. "Política Automotiva Comum Brasil-Argentina e o redutor de 40% do Imposto de Importação de autopeças. Controvérsias quanto à integração de Tratado Internacional ao ordenamento jurídico brasileiro".
[4] Temos também de considerar que o ACE 14 é o ato que permite as trocas entre Argentina e Brasil de produtos automotivos sem incidência da Tarifa Externa Comum (TEC).
[5] Conforme disposto no artigo 4º do ACE 14-38:
"ARTIGO 4º - Alíquotas Nacionais de Importação
Os 'Produtos Automotivos' não originários das Partes serão tributados, ao ingressar no território de cada uma das Partes, com as alíquotas indicadas no Artigo 3º ou com as que resultem das exceções mencionadas neste Acordo e as preferências transitórias previstas nas legislações nacionais."
[6] Sobre esse assunto vide artigo de 01/03/2005: OLIVEIRA, Alexandre Lira de. "Resolución nº 6/2005: redução argentina do imposto sobre importações de autopeças Extra-Mercosul".
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