LEGISLAÇÃO

quarta-feira, 17 de março de 2010

Documentos e procedimentos em excesso travam os negócios

Documentos e procedimentos em excesso travam os negócios
Juan Garrido

A convivência com um cipoal de decretos, portarias e instruções normativas aplicados por diferentes órgãos do governo e cujos procedimentos nem sempre ocorrem de forma coordenada exige muita energia e muitos recursos dos brasileiros. Embora os especialistas afirmem que os abusos burocráticos não sejam uma característica só verde-amarela - e sim uma epidemia mundial -, dados do Banco Mundial mostram que no Brasil a regulação da atividade econômica é uma das mais travadas no mundo.

A pesquisa anual "Doing Business", promovida anualmente pela instituição, faz uma análise comparativa entre 183 países. Por meio da aplicação de modelos empíricos, examina a facilidade para a abertura de empresas, obtenção de alvarás, contratação de funcionários, registro de propriedades, obtenção de crédito, proteção de investidores, pagamento de impostos, comércio entre fronteiras, cumprimento de contratos e fechamento de empresas.

Sob a perspectiva geral da facilidade para fazer negócios, o Brasil está na 129ª posição entre as 183 economias analisadas - dois pontos abaixo do relatório de 2009. Na América Latina, só ficaram abaixo Equador, Bolívia, Venezuela, Haiti, Suriname e Honduras. Entre os dados que mostram a economia brasileira saindo-se bem figuram o índice de cobertura de órgãos privados de proteção ao crédito, a transparência nas relações com investidores e o índice de eficiência na proteção a esses investidores (tudo na esfera de atuação privada).

O pior dos resultados está nos procedimentos para o pagamento de impostos, em que o Brasil ocupa a 150ª posição. Os empresários brasileiros, segundo a pesquisa, têm que arcar com os custos de 2.600 horas anuais de trabalho para fazer frente à burocracia tributária. A média, na América Latina e no Caribe, é de 385,2 horas. Nos países de renda elevada (OCDE), de 194,1 horas.

O governo brasileiro, no entanto, vê esses dados com desconfiança. "A metodologia utilizada pelo Banco Mundial - que coleta as informações por intermédio de formulários preenchidos por intermediários - vem sendo objeto de questionamentos por parte do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior [MDIC]", diz o secretário de Comércio Exterior da pasta, Edson Lupatini Júnior. Segundo ele, o MDIC, em parceria com diversos órgãos do governo federal, tem se esforçado para a melhoria do ambiente jurídico, com simplificação e desburocratização dos processos de legalização e funcionamento das empresas, bem como do desenvolvimento de sistemas informatizados.

O principal instrumento desse processo é a Rede Nacional de Simplificação de Registro e Legalização de Empresas e Negócios (Redesim). A primeira etapa da implantação da rede deu-se com a entrada no ar do Portal do Empreendedor Individual (MEI), que tem como meta a formalização de 1 milhão de cidadãos que recebem até R$ 36 mil por ano. "Trata-se de processo automático do registro do empreendedor e será um grande laboratório para testar a eficácia das medidas implantadas", diz Lupatini.

Os próximos passos serão a extensão da Redesim para os demais tipos e portes de empreendimentos, que dará a todos os empresários, condições de abrir, encerrar e transformar seus negócios de forma substancialmente mais simples que a atual.

"Outra iniciativa será a adoção do alvará provisório, que alcançará um grande número de empresas", diz. Esse conjunto de medidas, em associação com outras iniciativas dos governos estaduais e municipais, permitirá em um futuro próximo a plena automatização do processo de legalização e funcionamento de quase todas as empresas brasileiras, avalia Lupatini.

Com uma visão mais crítica, o economista Renato Fonseca, coordenador do programa "Corte a Burocracia" da Confederação Nacional da Indústria (CNI), afirma que com regras que se amontoam e sofrem alteração a toda hora, o governo se vê obrigado a concursar mais fiscais e as empresas a inchar seus departamentos contábeis e jurídicos para assimilar as legislações, em vez de investir em, por exemplo, inovação tecnológica e aumento da produção.

O arsenal de regulamentos que o governo criou para se defender das más práticas das empresas - a corrupção, via superfaturamento e outros expedientes - tem se mostrado pouco eficaz, avalia Fonseca. "Não adianta instalar um portão para fechar o sinal de tráfego, pois quem quer burlar os códigos de trânsito acaba dando a volta." Para ele, a verdadeira solução é endurecer as punições aos faltosos.

O programa da CNI visa coletar sugestões do setor privado e da sociedade em geral e selecionar aquelas que possam servir como insumos efetivos para racionalizar os controles e que seriam encaminhadas possivelmente à Casa Civil - o ponto focal do governo que "conversa" com todos os ministérios.

Fonseca alerta, contudo, que o espectro das proposições não será largo a ponto de sugerir mudanças na Constituição. A intenção não é apresentar um plano de reforma tributária inteira, ou de uma reforma trabalhista completa, por exemplo. "A ideia do projeto é tentar comer pelas beiradas, investindo contra os nichos onde se possa reduzir a burocracia." Como exemplo, cita as micro e pequenas empresas, que respondem por uma parcela pequena da arrecadação do país e por isso tornam sem sentido gastos do governo para fiscalizar uma por uma. "Os recursos deveriam ser reservados para a fiscalização do conjunto de empresas que representa o filé mignon da arrecadação." Com isso, diz, haveria mais eficiência no processo de verificação e ao mesmo tempo os negócios poderiam fluir com mais liberdade.

Mesmo onde há avanços, a situação é difícil em termos burocráticos. No quesito comércio exterior, a posição do Brasil na pesquisa do Banco Mundial melhorou um pouco no último ano. "Mas ainda estamos na centésima posição, bem abaixo dos outros países", diz Fonseca. Recentemente, conta, ele ficou surpreso quando soube que para o navio encostar na beira de um cais é preciso entregar antes cerca de 900 informações aos agentes de 14 órgãos anuentes - como Receita Federal, Marinha Mercante, autoridades portuárias e Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. "Essa burocracia é só para a embarcação permanecer no cais; depois para colocar a mercadoria do navio no porto ou do porto no navio, são mais centenas de procedimentos."

John Mein, coordenador executivo da Aliança Procomex - grupo privado que visa estabelecer uma interação entre setor privado e setor público para reduzir a burocracia na área de comércio exterior - confirma o grande volume das exigências e nota que pelos padrões em vigor a carga fica parada até que seja autorizada a andar. Mas pondera que ela poderia andar até que fosse ordenado que parasse. "Só que há um grande gargalo: os sistemas tecnológicos antiquados não permitem que ocorra essa mudança, mesmo existindo vontade política para executá-la."

Aos olhos de Mein, o conceito de burocracia ultrapassa a exigência de documentação. Também pode ser interpretada como entrave burocrático a falta de investimento em infraestrutura de sistemas informatizados, por exemplo. O Siscomex [Sistema Integrado de Comércio Exterior] ainda usa o sistema operacional DOS, da década de 90, enquanto os sistemas de outros países rodam em plataformas tecnológicas avançadas. Para complicar, no final da década de 90 os analistas seniores pediram aposentadoria. E o mais curioso é que o sistema do Siscomex, ao ser lançado na década de 90, foi considerado pioneiro no mundo.

Mein deposita esperanças no projeto Porto Sem Papel que tramita na Secretaria Especial de Portos (SEP). O objetivo é viabilizar a operação de um novo sistema informatizado para integrar todos os agentes envolvidos nas operações portuárias, eliminando o manuseio de vários formulários e papéis. "Essa, pelo menos aparentemente, é uma iniciativa positiva, desde que a autoridade portuária não continue exigindo o preenchimento de requisitos demais."

Para Fonseca, da CNI, alguns dos grandes malefícios que a geração de uma grande quantidade de prescrições produz são tornar mais difícil e custosa a formalização dos pequenos negócios, ao mesmo tempo em que se punem aqueles que estão seguindo a lei. "Por falta de melhor integração entre os órgãos anuentes, o simples pedido de um carimbo a mais chega a representar um nó na vida dos empresários e demais cidadãos."

O que leva um dos maiores especialistas na matéria, João Geraldo Piquet Carneiro, sócio da Veirano Advogados, a ponderar que continua atual o dito espirituoso do Barão de Itararé [o jornalista e humorista Apparício Torelly] de que "o Brasil é feito por nós; só falta agora desatar os nós". Piquet lembra que o inconformismo com a centralização administrativa vem de longe. Dos tempos da monarquia, com Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá, praguejando contra o alvará régio, a autorização do rei para qualquer empreendimento de caráter empresarial. "Foi-se o ´régio´, mas o termo alvará continua significando que a iniciativa individual depende de uma concessão unilateral do Estado."

Piquet, que é também presidente do Instituto Hélio Beltrão, explica que a discussão do fenômeno da burocratização dos serviços públicos brasileiros remonta à segunda metade do século 19, quando se adensou o debate entre centralização versus descentralização política. Os defensores da centralização política preocupavam-se, no entanto, com as consequências que a centralização administrativa - dela derivada - poderia trazer para a administração pública. "Eles percebiam que a centralização de caráter meramente administrativo multiplicava as engrenagens do governo, os procedimentos, papéis e controles que produzem a lentidão do processo decisório."

Para Piquet, a tensão entre centralização e descentralização política e administrativa subsiste como dado fundamental para se entender o paradoxo da coexistência de pioneirismo e descontinuidade no campo administrativo. "O país começou cedo, há mais de 70 anos, a fazer reformas administrativas avançadas, o que não impediu a reincidência de ciclos de empobrecimento da administração pública, tanto em termos conceituais quanto práticos, como o que vivemos atualmente."

O Brasil, explica, foi pioneiro no início nos anos 30, nos anos 50, nos anos 60, e voltou a sê-lo na década de 80, "com a criação de um programa altamente democrático que recolocou o cidadão como destinatário final da ação administrativa". Esse foi o Programa Nacional de Desburocratização, capitaneado pelo então ministro Helio Beltrão, responsável pela abolição de milhares de documentos desnecessários, com destaque para a extinção de atestados de vida, de residência, de bons antecedentes, de pobreza e de dependência econômica.

A iniciativa, porém, teve fôlego curto. Embora o programa nunca tenha sido formalmente extinto, ele perdeu ênfase no final da década de 80. No início dos anos 90, novas medidas de maior impacto chegaram a ser adotadas, no âmbito do Programa Federal de Desregulamentação. Entre elas, a simplificação dos procedimentos de embarque e desembarque nos aeroportos, o aperfeiçoamento da emissão de passaportes e a revogação de mais de 100 mil decretos superados e desnecessários. Mas não chegou a haver maior aprofundamento depois.

Piquet identifica nas seguidas síncopes dos processos de desburocratização uma tendência. "O Estado brasileiro ainda é muito autoritário, além de centralizador. Trata o cidadão como se fosse súdito e não como o que realmente é, ou seja, o dono do país", avalia.

Na visão do especialista, quatro fatores se colocam no caminho de uma reforma efetiva. Além da forte vocação à centralização administrativa, que está na base de tudo, há o formalismo jurídico, que conduz à idealização das instituições a partir de uma visão estritamente legal. Ele acha que o país é hoje uma federação menos porque Estados e municípios efetivamente funcionam como entidades políticas autônomas e responsáveis, mas porque a Constituição estabelece que o país é uma federação. "

O terceiro fator se expressa na desconfiança que preside o relacionamento do governo com a sociedade. Parte-se do pressuposto de que o cidadão, ao buscar um serviço público, está sempre querendo obter uma vantagem e não um direito inerente. Ele entende que é por isso que as leis e regulamentos tratam o cidadão como estelionatário em potencial. "Daí também porque a prova formal - o documento, a certidão e a firma reconhecida - são mais importantes do que a realidade objetiva."

O quarto fator é o viés autoritário da administração pública. A seu ver é o autoritarismo que empresta ao administrador a condição de detentor monopolista da verdade e do conhecimento a respeito do que é melhor não só para o Estado como também para o próprio cidadão. "É ainda o autoritarismo que faz com que o cidadão seja colocado - e ele próprio se coloque - na posição de súdito e dependente dos interesses e da vontade do Estado."

Esses fatores formam o caldo de cultura que conspira para que não se instale no país uma administração pública eficiente e democrática. Para Piquet, sempre que se buscar uma nova estratégia de desburocratização será preciso levar em conta esses tópicos. "Não é um caminho simples de se trilhar, mas que terá, mais cedo ou mais tarde, que ser percorrido."
Valor Econômico

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