LEGISLAÇÃO

terça-feira, 16 de abril de 2013

JUSTIÇA TRIBUTÁRIA





As vítimas do IR e dos erros do maldito sistema

Todos nós podemos ser vítimas de um monstro fazendário a quem servidores negligentes costumam dar o nome de sistema. Ninguém duvida que a informatização viabiliza enormes benefícios para a sociedade, coletando um volume cada vez maior de informações a velocidade e com precisão jamais imaginados em passado recente.
De fato, tais mecanismos permitem que as autoridades fazendárias tenham acesso a praticamente tudo o que acontece com a vida dos contribuintes, a ponto de ser  cada vez  menor a possibilidade de mantermos nossa privacidade diante do fisco.
Com isso, a sonegação está em estado terminal, o que é bom para todos, pois onde todos pagam seus impostos a concorrência pode ser mais justa e a harmonia social poderá ser alcançada,  quando tivermos uma reforma tributária que : a) reduza a carga tributária abusiva que hoje inibe os investimentos; b) simplifique a burocracia irritante que nos atormenta; e c) assegure um sistema tributário estável, que não mude a todo momento,  para favorecer alguns grupos econômicos.
Isso seria mesmo uma beleza, não fosse por um simples detalhe: os sistemas podem falhar e as pessoas que os administram não reconhecem as falhas com a necessária presteza.  Os erros que ocorrem acabam prejudicando as pessoas que não os cometeram, enquanto seus responsáveis não se esmeram em evitá-los e até mesmo beneficiam-se de sua desídia.
Segundo informações divulgadas pela Receita Federal, mais de 70 mil pessoas tiveram suas declarações de imposto de renda retidas na chamada “malha fina” no ano de 2012, apenas com supostas irregularidades no abatimento de despesas médicas.
Tal questão foi comentada em nossa coluna anterior, onde registramos atitude desrespeitosa de servidor que se julgava no direito de saber de qual moléstia sofria o contribuinte para admitir abatimento que a lei autoriza.
O ditadorzinho atrás do balcão julgou-se acima da lei e trouxe ao seu  patrão (são os contribuintes que pagam os salários dos servidores) mais uma preocupação além da doença, pois agora está a defender-se de lançamento criminoso, correndo o risco de encontrar pela frente a ausência de justiça que nos visita com irritante freqüência. Aqueles tais mecanismos de controle recebem do fisco o nome de cruzamentos,  que no passado eram utilizados para a reprodução de animais e agora, ao que parece, para a multiplicação deidiotices.
Já tivemos oportunidade de comentar caso em que um empregado, ocupando elevado cargo numa das maiores empresas do país, teve todos os seus abatimentos desconsiderados, pois a pensão que pagava à sua ex-mulher era descontada de seu recibo de pagamento e a ela entregue  pelo empregador, por força de decisão judicial.
Tanto o  empregador quanto o empregado prestaram  corretamente todas as informações ao fisco. Mas apenas porque o salário bruto do empregado era “muito alto” (essa foi parte da explicação ouvida) ele foi intimado para dar explicações. Como o contribuinte estava fora do país a trabalho, não recebeu a intimação e, poucos dias depois, ao retornar, recebeu multa, quando deveria receber restituição!
Seria cômico, se não fosse idiota, que um servidor público pudesse entender que um suposto “salário alto” torna alguém suspeito. Ao que se sabe, tal conceito é relativo. Não vamos comentá-lo, pois nossos leitores não merecem ler a enorme quantidade de adjetivos em que pensamos para qualificar o tal ditadorzinho. Com isso, surgiu mais um processo tributário, a avolumar as estatísticas oficiais, quando se costuma atribuir ao contribuinte uma excessiva litigiosidade. Querem o quê ? Que as vítimas se deliciem com os assaltos e ainda adorem seus algozes?
O nível das informações a que pessoas jurídicas se tornaram obrigadas a fornecer chegou a valores ridículos, com o evidente intuito de tumultuar a vida de toda a sociedade brasileira.  Claro exemplo disso são os limites de R$ 5 mil por semestre nas informações que bancos e administradoras de cartões de crédito devem fornecer à Receita nas tais Dimof e Decred.
Ante esses limites (Instrução Normativa 811/2008) temos que até pessoas com rendimento inferior a R$ 1 mil por mês, ou seja, isentas de declarar e pagar o imposto,  estão sujeitas a tais cruzamentos! Para que serve isso, senão apenas para tumultuar o volume de dados a serem processados?
As informações sobre movimentação financeira e cartões de crédito são propícias para gerar confusões que não indicam sonegação. Esquece-se o fisco que no cartão de crédito existe a possibilidade de saque em dinheiro, que pode ser depositado num banco ou usado em outra operação que não indique consumo, acréscimo patrimonial ou rendimento.
Ora, o fisco ao constatar operações tidas como estranhas ou atípicas, pode pedir extratos bancários e aí a coisa se torna um pouco mais confusa, como vemos adiante. Milhares de contribuintes no país todo foram intimados a fornecer informações e documentos, especialmente extratos bancários e comprovantes da “origem dos recursos depositados” em suas contas bancárias.
Nessas intimações o Fisco informa o valor da “movimentação” e o nome do estabelecimento bancário que teria dado a informação e dá ao contribuinte o prazo de vinte dias para o atendimento, tudo com alegada sustentação nos artigos 904, 911 e 927 do Decreto nº 3.000/ 99 (Regulamento do Imposto de Renda), informando ainda que os valores da “movimentação financeira” foram informados na forma da lei 9.311/96.
Várias questões devem ser examinadas pelo contribuinte,  antes de tentar localizar seus extratos bancários e comprovar a “origem dos recursos depositados” em suas contas.
Primeiro, é necessário observar que os artigos 904 e 911 do regulamento do imposto de renda não obrigam ninguém a fornecer extratos bancários. O artigo 904 cuida apenas da competência legal dos agentes fiscais, enquanto o 911 faz referência ao exame de livros e documentos de contabilidade, questões mais relativas às pessoas jurídicas, embora mencione de forma superficial  que os fiscais farão “investigações necessárias para apurar a exatidão das declarações”.
O artigo  927 diz que todas as pessoas físicas ou jurídicas, mesmo que não sejam contribuintes, são obrigadas a prestar informações e esclarecimentos exigidos pelo Fisco. Em nenhum momento o contribuinte é obrigado a fornecer extratos bancários, papéis que sequer são de conservação obrigatória e também não existe, de forma expressa, a obrigatoriedade de que a origem dos depósitos seja comprovada documentalmente.
A lei fiscal no mundo todo diz que até mesmo os rendimentos ilícitos são tributados. Por outro lado, o contribuinte tem o direito de, quando declara seu rendimento, omitir a origem. Isso se torna claro especialmente naquelas profissões onde o sigilo é obrigatório.
Não pode o Fisco, portanto, obrigar o contribuinte a fornecer extratos ou comprovantes de origem dos recursos. Cabe exclusivamente ao agente fiscal realizar as “investigações necessárias para apurar a exatidão das declarações”. Afinal de contas, ninguém pode ser obrigado a incriminar-se, além do que a Constituição Federal garante, no artigo 5º, inciso LVII , que todos são presumidamente inocentes.
Em verdade, não se permite lançamento de imposto de renda com base apenas em depósitos bancários. Nesse sentido existe até mesmo uma antiga Súmula do Tribunal Federal de Recursos, de nº 182, que diz: “É ilegítimo o lançamento do Imposto de Renda arbitrado com base apenas em extratos ou depósitos bancários.”
Também o 1º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, em uma histórica decisão administrativa, já decidiu que: “Não cabe a tributação por arbitramento de lucro com base exclusiva em depósitos bancários.”
Já houve um julgador sabichão que andou dizendo que a súmula é antiga demais, que está superada e que o CC mudou suas posições. Trata-se de mera opinião, pois não se pode admitir que o antigo TRF tenha decidido daquela maneira quando estava brincando na hora do recreio, nem que o CC somente agora contem a participação de gênios, antigamente tendo sido composto por néscios.  O que ambos os julgamentos examinaram foram questões de princípios, baseadas no fato de que o fato gerador do IR não é o depósito em si mesmo e que fatos ilícitos não se presumem, mas devem ser provados apenas por quem os alega e invoca como tal.
Ao utilizar os dados de contas bancários para apurar  sonegação do imposto de renda, a fiscalização poderá cometer um equívoco  enorme, pois a movimentação financeira não significa existência de rendimento tributável.
Inúmeras são as situações em que o contribuinte poderá ter movimento financeiro superior à sua renda, sem que haja aí qualquer ilegalidade. Há casos evidentes, como quando o detentor de recursos alheios apenas os mantém em seu poder por certo prazo , como é o caso, por exemplo, dos administradores de imóveis, dos cobradores, dos advogados que efetuam cobranças para seus clientes etc.
Outra situação muito comum é quando o contribuinte possui diversas contas bancárias, efetuando transferências de uma para outra. Ou , mesmo possuindo uma única conta, quando o Banco faz aplicações financeiras e depois, ao resgatá-las, o valor do resgate é considerado um novo movimento financeiro. Nessa situação, o valor da aplicação pode, num exame superficial, ser considerado rendimento tributável, quando na verdade o são apenas seus rendimentos.
Os extratos bancários não são no sentido legal do termo documentos que o contribuinte deva conservar. Aliás, desses papéis invariavelmente consta a expressão extrato para simples conferência, o que por si só revela que se trata de um papel que não cria obrigações nem gera direitos.
As fontes de informações que podem ser cruzadas com a declaração do contribuinte vem se prestando para criar uma série de dificuldades e transtornos para todos. Lamentavelmente, o atendimento nas repartições ainda continua ruim apesar das senhas, cadeiras e outros aparatos para tentar exibir-nos um certo ambiente de conforto que, ao que consta, só existe nos grandes centros.
Mas o contribuinte não quer só conforto e água gelada. Quer, primeiramente, que suas declarações sejam cuidadosamente revistas ANTES de qualquer notificação, para que erros óbvios (caso do executivo de “alto salário” por exemplo) sejam corrigidos de ofício. E mais:  que, ao comparecer e prestar os esclarecimentos e documentos, estes sejam recebidos com a presunção de boa fé que qualquer cidadão merece. Não existe no Brasil nenhuma possibilidade de inversão de prova a favor do fisco.

Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2013


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