LEGISLAÇÃO

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O novo Código de Processo Civil e o direito dos transportes



O novo Código de Processo Civil e o direito dos transportes
invalidade e ineficácia das cláusulas de eleição de foro estrangeiro e/ou de arbitragem no contrato de transporte marítimo internacional de carga



Paulo Henrique Cremoneze


O novo Código de Processo Civil já se encontra em vigor desde 18 de março de 2016, instituindo, no plano instrumental, uma nova visão. Evidentemente que um Código novo carrega consigo expectativas, positivas e negativas. Muito papel e bastante tinta serão consumidos a respeito do Código e certamente os debates serão intensos e sucessivos, conforme as novas regras processuais forem aplicadas cotidianamente.


Interessa-nos abordar um assunto importante para o Direito dos Transportes, para o Direito Marítimo e para o Direito do Seguro, qual seja, a regra que trata da primazia do compromisso arbitral.


O objetivo principal é mostrar que essa regra não é aplicável aos casos (litígios) envolvendo contratos internacionais de transportes marítimos e/ou aéreos de cargas, porque típicos contratos de adesão.


E, como tais, a arbitragem não é fruto do consenso entre as partes, mas algo decorrente da imposição do transportador ao consignatário da carga, com reflexo indevido ao segurador sub-rogado, que nem mesmo é parte no contrato de transporte (aéreo ou marítimo).


Os transportadores marítimos (ou aéreos) de cargas impõem cláusulas contratuais aos consignatários de cargas, usuários dos serviços de transportes. Esses mesmos usuários não externam suas respectivas vontades, de tal modo que as referidas cláusulas são abusivas e ilegais, como o Poder Judiciário sempre reconheceu. E sendo tais cláusulas abusivas e ilegais, impostas unilateralmente, não podem ser abraçadas pelas novas regras processuais que tratam do foro estrangeiro de eleição e da convenção de arbitragem.


A ausência da voluntariedade ampla e bilateral inibe a efetiva incidência das novas regras processuais relativamente aos contratos internacionais de transportes marítimos. E dentro dessa concepção, como demonstrar-se-á ao longo deste trabalho, com mais razão tais cláusulas não são aplicáveis às seguradoras legalmente sub-rogadas nas pretensões dos segurados e consignatários de cargas, autoras de ações regressivas de ressarcimentos contra os mesmos transportadores, uma vez que sequer foram e são partes nos mesmos e criticados instrumentos contratuais abusivos.


Vale registrar, desde logo, que tudo o que se defender neste trabalho relativamente ao contrato de transporte marítimo de carga cabe, perfeitamente, ao congênere no modo aéreo de transporte, uma vez que os arquétipos práticos e jurídicos são rigorosamente os mesmos, existindo simetria plena entre os dois citados contratos.


Vejamos. A cláusula de compromisso arbitral presente no conhecimento marítimo, o instrumento do contrato (internacional) de transporte marítimo de carga é manifestamente abusiva, porque alheia ao princípio da autonomia da vontade, relativamente à parte que foi obrigada a aderir às normas contratuais impostas pelo transportador.


Além disso, essa mesma cláusula, imposta unilateralmente, não segue a forma expressamente disposta pela lei de arbitragem brasileira para o compromisso arbitral em contrato de adesão.


Por tais e outras importantes razões, não há que se falar no caso concreto em eventual preferência do procedimento arbitral, segundo o artigo 3º, §1º.


Logo, antecipa-se a conclusão deste breve estudo e se afirma que em relação ao Direito dos Transportes, sobretudo quando interligado ao Direito do Seguro, o novo Código de Processo Civil não mudou, tampouco mudará, algo, seguindo-se, pois, a orientação jurisprudencial de décadas.


Acrescente-se às sobreditas razões uma outra, absolutamente fundamental: a suposta convenção de arbitragem não é, a rigor, nos contratos internacionais de transportes marítimos e/ou aéreos de cargas, levada à efeito segundo a lei de arbitragem brasileira.


Com efeito, além de ser outra imposição presente num contrato de adesão, referida disposição atenta frontalmente contra a própria lei especial sobre a matéria. Vale lembrar que o mesmo Código de Processo Civil reconhece a possibilidade e a validade da arbitragem desde que expressamente observada a forma legal, conforme dispõe o §1º do artigo 3º: “É permitida a arbitragem, na forma da lei”.


O que se infere da parte final do referido enunciado é simples e não comporta muita ilação a respeito, senão a óbvia: se a lei não for rigorosamente observada, não há que se falar em arbitragem!


E nos litígios relativos ao Direito do Transporte a convenção de arbitragem não é uma verdadeira convenção, mas outra inaceitável imposição dos transportadores em geral.


Em se tratando de contrato de adesão, a convenção de arbitragem tem que ser disposta num termo à parte, específico, anexo, assinado pelas partes e/ou disposto no próprio corpo do contrato, mas com letras destacadas e com a assinatura da parte aderente sobre o texto respectivo. Nada disso costuma ser observado nos referidos contratos. Se o contrato de adesão não obedecer fielmente às disposições da lei de arbitragem não haverá o que se falar em validade e eficácia da respectiva convenção, sendo nula de pleno direito a cláusula respectiva.


Mesmo antes do novo Código de Processo Civil, o assunto já consumia nossa atenção, por conta do exercício profissional cotidiano.


Isso porque havia e há em curso uma tendência de se querer ampliar os efeitos jurídicos e práticas da cláusula de arbitragem, atingindo quem dela não é parte legítima e interessada.


Entendemos que essa tendência é equivocada e não terá força para seguir adiante, até porque o posicionamento jurisprudencial é claro e praticamente uniforme no sentido de a cláusula de arbitragem não projetar efeitos para quem dela não tomou parte voluntariamente.


Não se pode deslembrar que a voluntariedade é a qualidade por excelência da arbitragem, sem a qual ela não se fez meio legítimo de solução de litígios, mas imposição arbitrária e inconstitucional


No campo do Direito dos Transportes e, em especial, do Direito Marítimo, notadamente na parte que ele se justapõe ao Direito do Seguro, o tema assume especial relevância e merece ser abordado com seriedade.


A melhor forma de se evitar um erro inoculado de grave injustiça é combate-lo no seu nascedouro, na fonte de sua gênese.


Falamos, especialmente, do seguro de transporte de carga, do próprio transporte marítimo de carga e da sub-rogação, sendo que tudo aquilo que cabe ao modal marítimo de transporte, cabe, como já se disse, com igual simetria, ao modal aéreo.


A seguradora sub-rogada nos direitos e ações de um segurado, consignatário de carga, vítima de uma relação contratual de transporte frustrada pelo armador, transportador marítimo (e/ou pelo transportador aéreo), não pode ser obrigada a aderir ao procedimento de arbitragem imposto unilateralmente no corpo do conhecimento marítimo, o instrumento que configura o contrato de transporte marítimo de carga.


Muito aproveita enfatizar que no caso específico da cláusula de arbitragem presente no contrato de transporte internacional marítimo de carga (no contrato de transporte aéreo, tal imposição é bem menos comum) existem duas razões fundamentais para sua não aplicação, sendo uma geral e outra própria para o caso da seguradora sub-rogada.


Ei-las. A primeira e geral, informa que a cláusula de arbitragem constante no anverso do conhecimento marítimo é redigida em dissonância com a Lei de Arbitragem do Brasil, razão pela qual é nula de pleno Direito. Mesmo o consignatário da carga, parte no contrato, não pode ser obrigado à obedecê-la porque manifestamente abusiva e ilícita. Já a segunda causa, relativamente à seguradora sub-rogada, reside no já comentado atributo da voluntariedade, uma vez que a seguradora não é parte da relação contratual de transporte, não se lhe podendo, portanto, impor um ônus convencional, ainda que este fosse harmônico à lei da arbitragem. Ao contrário do que se ventila por aí, existem limites para a sub-rogação e estes são bem esquadrinhados pelo sistema legal como um todo.


O segurador legalmente sub-rogada não se vê, portanto, obrigado a respeitar normas contratuais assumidas ou unilateralmente impostas ao seu segurado e consignatário da carga.


Com efeito, se o segurador não tomou parte no contrato de transporte, não é justo e devido que ele seja eventualmente obrigado a aceitar as cláusulas do contrato de transporte, na medida em que sua manifestação de vontade não se viu em momento algum convolada na efetivação do contrato. Isso é especialmente evidenciado no caso da disposição arbitral, na medida em que a figura da voluntariedade não se faz presente.


Na esteira disso, temos ainda que repudiar a cláusula que impõe a arbitragem.


Diante das razões e fundamentos aqui colocados, nos parece correto o entendimento jurisprudencial de não submeter de maneira compulsória os casos de ressarcimento ao crivo da arbitragem. Esse entendimento, já pacificado no seio jurisprudencial, não poderá sofrer alterações com o novo Código de Processo Civil.


Não é ocioso em si: a regra propriamente dita é válida e eficaz, saudável até, mas não aplicável aos casos específicos dos contratos internacionais de transportes marítimos e aéreos de cargas. Nos outros negócios jurídicos, observados os pressupostos de validade, não se questiona o império do compromisso arbitral.


Conforme debatido, a adesão para resolução da lide via arbitragem deve ser voluntária e com expressa manifestação de vontade das partes. É necessário frisar que nenhuma crítica é feita ao sistema de arbitragem em si, muito pelo contrário, trata-se de medida eficiente e com grande valor na condição de auxiliar do poder judiciário, porém, entendemos que seu aceite sempre será uma prerrogativa das partes anuentes, não podendo sob hipótese alguma ser compulsória ou determinada, seja pelo judiciário ou mesmo por meio de cláusula em contrato de adesão com manifestação unilateral a respeito da matéria. Trata-se de medida que visa a trazer segurança jurídica plena e absoluta para todos os “players” do transporte marítimo de cargas, com condições claras e objetivas para que todos atuem com o menor número de conflitos possíveis.


Também nos cabe frisar que a possibilidade de cláusula de “oferta de arbitragem” deixa a possibilidade de escolha para todas as partes envolvidas, seja o transportador, dono da carga e também a seguradora para que decidam qual o caminho mais célere, economicamente viável, e mais interessante para as partes aderirem quando ocorrer lides envolvendo o transporte marítimo.


Terminamos essa conclusão da mesma forma que começamos, ou seja, enfatizando que a cláusula de arbitragem no Direito Marítimo é nula de pleno Direito, porque manifestamente abusiva e ilegal. E, em sendo nula de pleno Direito para o consignatário da carga, segurado e vítima do inadimplemento contratual do transportador, com mais razão o é para o segurador sub-rogado, uma vez que este não pode tomar parte de uma obrigação que, além de ilegal e abusiva, não contou em momento algum com sua expressa anuência, sendo verdadeira truculência jurídica qualquer entendimento em sentido contrário e com vistas a ampliar, indevidamente, os efeitos jurídicos da sub-rogação. Ela é um direito do segurador, um direito que se reveste de função social e impacto econômico geral, não um ônus.


Ora, diante de todo exposto, afirmamos sem constrangimento algum ou temor que a regra relativa à preferência da “convenção” de arbitragem não é aplicável aos contratos (internacionais) de transportes marítimos de cargas, porque:


1) disposta unilateralmente, por meio de cláusula impressa, no corpo de um instrumento contratual adesivo;


2) despida da livre manifestação de vontade da parte aderente;


3) há flagrante desconformidade com a própria lei de arbitragem;


4) a seguradora legalmente sub-rogada, sequer foi parte no contrato, não podendo ser obrigada a suportar os ônus pesados nele impostos.



O contrato de adesão, por razões de ordem moral e de ordem jurídica, razões ontológicas mesmo, sempre foi interpretado e aplicado restritivamente pelo sistema legal brasileiro, constituindo essa forma de inteligência verdadeiro mecanismo de calibragem e benfazeja tradição jurisprudencial. Não temos motivo algum para acreditar que a situação mudará com o novo Código de Processo Civil, até porque sua gênese conecta-se ao fim do formalismo pelo formalismo, da visão literal da regra legal, premiando o Direito enquanto instrumento da Justiça e do bem comum.


Por fim, cumpre enfatizar que, ainda que, porventura, se tenham por válidas referidas cláusulas contratuais, que não se lhe sejam reconhecidas a unilateralidade e a abusividade, eficácia alguma terão em relação ao segurador sub-rogado.


Isso por conta do que expressamente determina o art. 786, §2º do Código Civil, que diz ser “ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os atos a que se refere este artigo”.


O segurado não pode de modo algum prejudicar o direito de regresso do segurador e, em sendo assim, cláusulas contratuais que impliquem derrogação da jurisdição nacional ou procedimento prejudicial não são eficazes, ainda que válidas.


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